Salomé, de Iaranda Barbosa

por Tailany Costa__

 



Numa narrativa que se passa no Recife de 1850, conhecemos as personagens centrais da novela histórica de Iaranda Barbosa. Felipe Alencar Paes é poeta e há tempos não encontra inspiração para os seus textos, vendo a sua arte fracassar. Mas ele tem uma ideia fixa: precisa encontrar uma amada. Mais que isso: sabe que a sua inspiração será mais genuína se essa amada morrer, pois quanto mais idealizada ela for, maior valor dará aos seus textos, assim pensava. Interessante é que ele tinha diante de si uma cidade cheia de nuances, material rico para criação de seus poemas, mas ele não valorizava isso: só o amor poderia ser um tema bom o suficiente. 

 

“As andanças pelas freguesias, sobretudo a do Recife, a fim de encontrar temas ou escutar as musas eram inúteis, Felipe sabia. A ilha com construções mal edificadas em meio a sobrados e mocambos, povo pouco asseado, banditismo, pontes arruinadas e vias com escassa iluminação noturna por onde transitavam os fomentadores do adensamento populacional, representados sobretudo pelos brancos natos, negros livres, mestiços libertos, crioulos rebeldes, escravizados fugidos, mulatos alforriados, pardos desertores e comerciantes, não aguçava os seus instintos poéticos.”

 

            Como ele se recusava a explorar temas que não fosse o amor, era necessário buscar a musa de suas próximas criações. E é em suas andanças pela cidade, na companhia do seu amigo Joaquim Dultra Machado, que ele a encontra. Leila Marinho Nunes Gomes de Sá é filha do senhor de engenho Antonio Marinho Nunes e de Mirtes Gomes de Sá. Sua família é conhecida por flertar com ideias liberais e abolicionistas, o que é visto com maus olhos por Felipe, um típico conservador e escravocrata. Mas o fato é que ele se encantou por Leila e não mediria esforços para conseguir realizar o seu objetivo. O poeta só não esperava que a moça fosse bem diferente das suas idealizações.

            Eles se aproximam e, Felipe, começando a cortejá-la, vai percebendo que ela tem opiniões políticas e sociais muito fortes, tal qual os seus pais. Ela veio de uma temporada em Paris, onde morava o irmão, e isso explica porque ela é tão culta e afeita aos ideais de liberdade trazidos de um país que há poucas décadas havia passado pela Revolução Francesa e vinha num processo de transformação e progresso que não só inspirava como era imitado por muitas metrópoles brasileiras, inclusive, pela capital pernambucana. As conversas entre eles são surpreendidas pelas fortes opiniões de Leila, que sabia conduzir cada situação ao seu favor - inclusive recuando quando preciso, deixando Felipe, figura masculina, resolver algumas situações burocráticas para ajudá-la. Isso aparece muito mais como estratégia de conseguir o que quer de maneira mais rápida do que alguma contradição de seu comportamento tão livre.

            Se Felipe é um personagem irritante, um poeta fracassado que põe nos outros a culpa da sua inabilidade na escrita, Leila é o seu inverso: suas opiniões e conhecimentos são fundamentados em diversas fontes, não em preconceitos ou medo do novo.  É como se esses dois personagens, como em um duplo, demonstrassem os dois lados do Recife de meados do século XIX: os mais nobres lado a lado com os mais pobres; o progresso lado o lado com a miséria; o nacional e o estrangeiro; a identidade e a imitação: tudo isso de maneira fundida, trazendo uma riqueza social que é muito bem abordada pela autora.

 

 “Leila parou de escutá-lo a partir do segundo verso. A pieguice e a previsibilidade das rimas denunciavam a tentativa de um Romantismo mal assimilado. Com toda certeza escreveria um poema muito melhor que aquele. Estava claro que nunca houve tempos áureos. As pessoas o ouviam e ouvem até hoje devido à influência política e econômica de sua família.”

 

A personagem Leila me apaixonou com sua argumentação firme e colocada de maneira bastante centrada. Uma mulher que está muito à frente do seu tempo e que traz constantes surpresas na narrativa até o final. Vale ressaltar que os limites colocados por ela própria em seu comportamento, conjugado com as rebeldias, mostram que ela não era leviana em momento algum e sabia muito bem como capitanear o seu próprio destino, porém sem perder o prumo social. Mas é por isso também que os seus pensamentos se tornam espaço para que ela destile ironias, ao observar a sociedade recifense e seus costumes.

Um outro aspecto que gostei bastante são as escolhas linguísticas acertadas, deixando clara a tônica política da obra. Falar de escravizados, e não de escravos, nos faz encará-los como indivíduos numa condição que lhes foi imposta e abolir a ideia de que eles são algo imutável, que nasceu - e que morrerá - escravo, já que tal palavra carrega um peso muito maior e natural, quase inerente, tirando a centralidade do opressor no processo de tornar esse indivíduo um escravizado.

            Salomé traz com maestria a história dessa mulher que, mais do que uma musa a quem o poeta fracassado destina o seu amor fajuto, é uma mulher múltipla que, fundada no seu contexto sociohistórico, não tem medo de pensar seu futuro além do que era destinado a uma mulher brasileira de alta sociedade à época. É uma obra que destaca como pode ser opaco e ridículo o sentimentalismo romântico, diante de um cenário tão rico para a criação poética. Iaranda conjuga todas essas questões com uma narrativa inebriante, que contempla bravamente a multiplicidade cultural e social do período retratado. Como disse Conceição Evaristo, ela vem com a sua primeira obra forçando passagem, para ajudar a preencher lacunas de uma literatura nacional contemporânea que nem sempre consegue retratar a nossa realidade em completude, diante de seus recortes. 


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Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. A referida novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.

 

 





Tailany Costa
é poeta, escritora e professora de Língua Portuguesa. Nasceu em Jaboatão dos Guararapes (PE), em 1989. Publicou o e-book Tenha cuidado ao passar pelas minhas dores na Amazon e venceu dois concursos literários: o TOC 140 – Ano IV (Fliporto), que culminou na publicação da antologia OS 100 MELHORES POEMAS DO TOC 140 (2013) e foi selecionada entre os 25 contos vencedores do I Concurso Literário Pintura das Palavras (2020).  Fala sobre escrita e livros  em seu canal do Youtube e no Instagram . No podcast Um teto todo delas, fala sobre literatura de autoria feminina. Site: https://tailanycosta.com/