por Adriano B. Espíndola Santos__
Fotografia: Jonatán Becerra |
Não
carecia de tantos protocolos. Ela tentava se acomodar à maneira da nova casa,
do seu jeitinho. A voz de Ana era rasa, aveludada, com um tom celestial e instâncias
de outros mundos. E, ao contrário do que possa parecer, nessas primeiras e
vagas linhas, digo à leitora: não há nada de anormal nem superior à vontade
pura dos corpos. Então, declaro com convicção, nossa relação se formou natural,
elemento constituído em bases substanciais e fluidas. Tudo começou com a doença
de minha mãe, a bela e doce Núbia, que, acometida dos nervos, por uma doença
degenerativa, com apenas cinquenta e cinco anos de idade, necessitou de mínimas
e delicadas assistências. Aí, por sorte do destino, tia Noêmia nos indicou Ana,
uma moça prendada, como dizia, afeita às coisas do lar, e muito, “mas muito”
atenciosa; que teria cuidado de uma amiga nossa, a Hermelinda – que ficara
acamada por anos, talvez dez ou mais, resultado de um acidente automobilístico,
até falecer por complicações várias. Ana Etelvina, desse modo se apresentou, no
dia cinco de dezembro de 2018, já pedindo que a chamassem simplesmente por Ana.
Não quis declarar as razões da arrelia ao nome. Aliás, com o intuito de dispersar
um aparente constrangimento, eu disse que era bonito, original; que, inclusive,
era o mesmo nome de minha bisavó. Nessa altura, com vinte e cinco anos, eu era
o “homem” da casa, como mamãe dizia. De fato, já era o homem da casa há, pelo
menos, vinte anos, quando o senhor meu pai resolveu se amigar com a vizinha –
que, hoje, felizmente, não é mais nossa vizinha. Foram morar nos confins da
cidade, praticamente incomunicáveis, o que para mim se tornou, com o tempo, um
grande alívio, vez que não teria de ouvir as suas reclamações infindáveis,
sobre a saúde, sobre o mercado, sobre a sua condição financeira e o escambau.
Falava até de um dinheiro que estava esperando receber, relativo a uma correção
ainda do tempo do plano Verão; algo que o revelava lunático, por viver em
função de um talvez. Veja como são os desígnios de Deus: meu pai, se estivesse morando
conosco, seria um peso incrível de carregar. A natureza tem os seus propósitos,
e, por certo, são todos corretos. Voltando à Ana, minha querida Ana: ela se
arrumou no cantinho reservado às visitas. Lógico, não tínhamos dependência de
empregada, como era costume na época. Mamãe deu fim ao estabelecimento prescrito
ainda aos moldes da servidão e reluziu tudo, transformando-o num ambiente
aconchegante e conforme, para atender, também, às esporádicas agentes de
limpeza, suas amigas, como fala. Ana se instalou aí, de início, muito acanhada,
com receio de nos perturbar. Notando a sua indisposição, mamãe pediu que, nos
primeiros dias, dormisse com ela – a estratégia, que eu já conhecia, era para
trocarem confidências, amenidades, e, assim, tornarem-se, como esperado, íntimas.
Isso surtiu um efeito surpreendente, bastante palpável, porque logo Ana estava
rondando pela casa, mexendo na geladeira, comendo o que bem entendesse, sem
quaisquer interrupções. E eu me regozijava observando o passarinhar; apropriando-se,
leve e segura, justamente do nosso ninho, como tinha de ser. Foi que, sem alvoroço,
nos aproximamos, medindo as distâncias, no compasso correto para a conexão. Ela,
melindrosa no trato, decerto por vivências divisivas, colocava-se, no mais das
vezes, em posição de servir, com a cabeça baixa, com medo de se entregar e se
perder pelos olhos. Percebendo, no entanto, que eu a tratava com ternura, como
uma de nossas preciosidades, acompanhou, somente no vigésimo dia, o meu diretivo
olhar. Creio que, como a mim, a sua estrutura balançou – e eu podia ver a sua
liquidez, quase volátil, se desfazendo em sublimação –, e nos aguentamos excedidos
em nosso calor. A partir daí, os dias não eram iguais. Eu acordava ainda mais
cedo, às seis da manhã – devia estar no trabalho às oito –, para absorver um
pouco de sua dadivosa brandura. Ela intuía as intenções, dispostas sobre a
mesa, à espera de que nos servíssemos. Mas houve o dia em que Ana não respondeu
aos meus chamados. Eu queria estar com ela à noite, no jantar, para prosear e dilatar
os instintos. Ela disse-me que estava bastante ocupada, com afazeres, para mim,
incógnitos – pois, das 20h às 5h do outro dia, Dinalva, outra meiga senhora,
amiga nossa, estava incumbida de dormir com a minha mãe. Quis insistir, para
que ceássemos juntos, como fazíamos de costume, mas ela pediu que, naquele dia,
a deixasse tranquila – em outras palavras: em paz –, porque resolvia supostos
problemas familiares. Eu sentia, pelas frestas da porta, a aflição. Parei, e lutei
para me conformar. Tornara-se, a meu ver, perceptível a minha intenção de lhe
acudir, para estar ao seu lado e a acarinhar, se fosse possível. Mas era
preciso respeitar o seu tempo. Na manhã seguinte, ansioso, depois de um banho
demorado, segui para a cozinha, com a ilusão de encontrá-la no recinto
demarcado. Sim, ela estava lá, cabisbaixa, temerosa, com as mãos trêmulas.
Senti um ímpeto incomum em socorrê-la; não suportava vê-la daquela forma. Ainda
assim, me contive e perguntei o que ocorria e se podia lhe ajudar. Em ares de levitar,
com a voz atropelada de tensão, relatou-me que não podia ser. “Como, Ana, o que
não pode ser?!”. Perguntei, ingênuo e ambíguo. Ela falou entredentes que não deveríamos
“avançar”. Que eu era um rapaz bem-criado, de boa família, e não caberia se
misturar com uma simples e humilde cuidadora. Que ela sabia do seu lugar e que
se convencera que andava com “doidices” na cabeça, pensando muito em mim.
“Olha, Ana, você está enganada; de verdade, não me conhece… Se essas doidices têm
a ver com paixão, eu também ando com isso na cabeça: por você!”. Ela afastou a
cadeira, segurando-a para não cair, e, depressa, se apoiou com as duas mãos na
mesa. Estava sem uma gota de sangue, atordoada com a notícia, que, certamente,
não esperava, assim, de supetão. “Sim, não há mal nenhum em dizer que estou
apaixonado por você, Ana! Não existem regras para o amor. Quando ele vem, é
preciso admitir e deixar que aconteça”. Ela sorriu e serenou, meio desconcertada,
sem acreditar. “É isso, minha querida Ana! Se me der a oportunidade, posso
mostrar que você está enganada com esses medos tolos. Eu quero e posso te fazer
feliz!”. “E a sua mãe, João, o que vai pensar de tudo isso? Vai achar que estou
me aproveitando… Não, é loucura… Ela vai nos matar!”. “Mamãe sabe amar, Ana;
sabe o que é o amor. Ela te quer muito bem e tenho certeza de que ficará
radiante. Será um bálsamo para animar os seus dias, tenho certeza disso!”. No
momento seguinte, após o primeiro beijo, Ana agarrou-se ao meu peito,
longamente, alentada de falsos temores, como a agradecer à vida. Retribuí-lhe o
abraço gostoso, com a intensidade de não a querer largar. Estando prestes a ir
ao trabalho, com os olhos gravados no relógio, ainda pude acordar mamãe com um longo
beijo na testa. Em silêncio, para não a assustar, falei em seu ouvido: “Eu e
Ana nos amamos. É só um presentinho para que acorde feliz”. Ela, ainda
sonolenta, por disposição dos remédios para dores, olhou-me plácida, um anjo,
distribuindo beijos e sorrisos. Hoje faz dois anos que Ana se estabeleceu definitivamente
conosco, cuida e cura a mim, a mamãe e o nosso amor. Esperamos a nossa primeira
filha, Simone, nome em homenagem à mulher que me ensinou o verdadeiro sentido da
vida; o que é viver – ela, minha mãe, poderia dar aulas e resolver a questão
fundamental dos filósofos mortais. Essa é a nossa lei.