por Dias Campos__
Paulo,
engenheiro de profissão, tinha uma paixão, uma aversão, e uma cruz que carregar.
Aquela era a predileção pelo poeta Castro Alves; essa, o mal-estar que
experimentava ao ver um pássaro engaiolado; e esta, Éverton, o primo rico com
quem não se dava desde os tempos de criança.
Uma
vez por mês, Paulo e seus amigos reuniam-se em um sarau literário. Era um
momento mágico, em que todos se nutriam do que havia de melhor.
Ele
jamais imaginou que um dia essa reunião pudesse deixar de ser prazerosa. No
entanto, o destino é caprichoso; quando não, provocador. E quando Paulo soube
que Cristina, integrante daquele grupo, estava namorando o antipático do seu primo,
uma nuvem agourenta começou a pairar sobre aquele aprisco. Afinal, não era
incomum convidarem-se outras pessoas para que se nutrissem com a boa
literatura.
Como
o sarau seguinte aconteceria em casa de Paulo, a tensão aumentava a todo
instante.
Até
que, certo dia, ele recebeu uma ligação de Cristina. Era para contar que
levaria Éverton ao próximo encontro.
O
desagrado que sentiu só não foi maior que o prazer experimentado por seu desafeto.
É que, ao ouvir de Cristina que eram amigos, e ao saber onde seria o próximo
sarau, Éverton foi tomado por uma comichão que há tempos não sentia. – um
retorno aos velhos tempos, uma excelente oportunidade para infernizá-lo!
Ora,
como bem conhecia a antiga aversão de seu primo; como estava viajando pelo
México; como já lhe tinham oferecido aves capturadas (mercado negro); e como
regressaria para o Brasil a bordo do seu iate particular, o que driblaria a
fiscalização, Éverton achou que não seria nem um pouco educado ir visitar um
familiar de mãos abanando. E tratou de comprar um Pássaro Preto.
O
milionário chegou ao Brasil efusivo e cheio de expectativas. Já o pássaro, triste
e enfraquecido.
Na
noite marcada para o sarau, Éverton foi buscar Cristina na hora aprazada. Mas
ao entrar no automóvel, a poetisa viu um grande saco de veludo azul escuro que jazia
no banco de trás. E como deduzisse que era para Paulo, elogiou o namorado por
tamanha delicadeza. – Ela notou pequenos furos no tecido, mas achou melhor não
comentar.
O
casal foi o último a chegar à casa de Paulo, que os recebeu com polidez, mas
com um sorriso amarelo.
Éverton
entregou o presente ao dono da casa, blasonou-se de tê-lo trazido no seu
próprio iate, e pediu que só o abrisse momentos antes de começar a falar,
justificando que o mimo mexicano o inspiraria noite adentro. Paulo prometeu que
o faria.
Depois
das apresentações, Paulo abriu oficialmente o sarau e perguntou quem primeiro declamaria.
Não
se precisaria dizer que todos o intimaram a que começasse.
Mas
como Éverton o encarasse, cobrando o prometido, Paulo não teve alternativa
senão a de ir pegar o embrulho que deixara no rol de entrada.
E
como retornasse sob um entusiástico coro de “Abre! abre!...”, passou a desatar
o laço.
Ao
levantar o conteúdo, ficou estarrecido! Era uma gaiola esmaltada em branco, e
que, por isso, realçava a cor do seu prisioneiro. – Ao ser surpreendida com o novo
ambiente, a pobre da avezinha pulava de um lado para o outro, como a buscar um
buraco por onde pudesse fugir.
E
se é verdade que ninguém sabia da real intenção de Éverton, também é exato
afirmar que todos torceram o nariz para esse tipo de agrado.
Paulo
pôs o presente sobre a mesa de centro, e ficou mudo e imóvel por alguns
segundos, como a tentar reaprumar-se.
E
depois de enfatizar que o pássaro era negro,
que fora comprado no exterior, e que
tinha sido trazido pelo mar, o
anfitrião disse que a única maneira com que poderia exprimir o seu
contentamento seria por meio destes conhecidos e clamorosos versos:
“Fatalidade atroz que a mente
esmaga!
Extingue nesta hora o brigue
imundo
O trilho que Colombo abriu nas
vagas,
Como um íris no pélago
profundo!
Mas é infâmia demais!... Da
etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo
Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos
ares!
Colombo! fecha a porta dos teus
mares!”
Com
exceção de Éverton, que permaneceu sentado e sem nada entender, todos ficaram
de pé e aplaudiram com entusiasmo a última estrofe de O navio negreiro. – Mesmo envergonhada, Cristina preferiu o brado
ao namorado.
E
como a mensagem de Castro Alves tinha sido apreendida pela maioria, o sarau teve
que ser interrompido para que o Pássaro Preto ganhasse a liberdade.
Dias Campos - Autor do romance A promessa e a fantasia (Promise and fantasy), ambas as versões em Amazon.com.br, 2015; “Embajador de la Palabra”, título concedido pela Asociación de Amigos del Museo de la Palabra, 2014; 2010; autor do romance As vidas do chanceler de ferro, Lisboa: Chiado Editora; Colunista do Jornal ROL; do (atual) site Cultura & Cidadania; do Portal Show Vip; e do (atual) portal Pense! Numa notícia; autor de diversos textos literários; autor e coautor de livros e artigos jurídicos.