por Taciana Oliveira __
Nesta edição
conversamos com a poeta Katia Marchese. Ela nos brinda com o lançamento
de Mulheres
de Hopper, seu primeiro livro (editora Patuá, 2020): Este
livro traz mulheres reagindo a opressão, mesmo que sozinhas e poder sentar em
rodas de leitura da vida nesse momento é algo de grande importância, todas nós
estamos precisando criar espaços de partilha e colaboração para enfrentar esse
mundo pandêmico e machista.
1 - A
obra de Hopper perdura na sua enorme ascendência no mundo das artes e no
universo da cultura pop. Célebre por retratar a solidão e a melancolia em suas
telas, o pintor americano foi influenciado fortemente pelo realismo. Em “Mulheres
de Hopper”, você nos entrega 26 poemas ilustrados e inspirados na narrativa
visual do artista. Conta pra gente como acontece a costura desse diálogo e como
ele é ressignificado para a realidade do nosso universo feminino.
As
décadas em que o pintor Edward Hopper retratou a maioria dessas mulheres é o
pós-guerra, basicamente compreende os anos de 1945 a 1960, uma sociedade onde
as mulheres historicamente do lar começam a trabalhar e a lutar por direitos
civis. Muitos anos se
passaram algumas coisas mudaram, mas as condições de vida e luta das mulheres
ainda caminha lentamente na resistência ao patriarcado. Considerado o pintor da
solidão urbana, mais do que pintar as cidades vazias e seus raros personagens,
Hopper escolheu as mulheres e os seus corpos para dizer sobre a natureza da
intimidade e dos reflexos da solidão urbana.
Os poemas são também uma resposta a essas imagens
criadas por ele e pela luz que evidencia os corpos e os objetos dentro das
cenas concebidas. Esse jogo de luz e sombra atravessa essas mulheres entretidas
consigo mesmas, enfrentando os dilemas sociais, políticos e amorosos de suas
vidas. Elas não são necessariamente tristes, não são diferentes ou especiais,
são comuns e por isso mesmo intensas e extraordinárias para a poesia e para a
emancipação do feminino.
As personagens retratadas nas obras podem estar longe
de casa ou as vezes em suas próprias casas, estão nuas na intimidade de seus
quartos, bebem em um bar, olham pela janela a vida e os espaços públicos ou
estão em alguma situação de espera. Podem ter sido abandonadas ou ter
abandonado alguém, estão em busca de trabalho, sexo ou companhia, à deriva em
lugares fixos ou provisórios. São mulheres que dentro de seus espaços íntimos
resistem e enfrentam a cultura machista, misógina, disfarçada de “mito do amor
romântico”, uma crença que está impregnada em nossos corpos, falas e mentes. Foi nesse processo íntimo, alquímico e de
desconstrução do imaginário feminino que escrevi os poemas deste livro, poder
revelar vivências, encontrar dentro dessas mulheres seus centros de força e
proteção, a capacidade de salvar a si próprias, de gozar a liberdade e o
prazer, mas também encontrar a dor que as destrói e ameaça suas existências,
sem romantizar nenhuma dessas realidades.
2 – Mulheres de Hopper” contempla não apenas o
lançamento do seu primeiro trabalho solo, mas o desdobramento em rodas de
leituras com mulheres em situação de vulnerabilidade social. De que forma as
oficinas e rodas de conversa podem possibilitar transformações nessas mulheres?
O
projeto Rodas de Leitura da Vida vinculado ao livro pretende a partir dos
poemas e ilustrações que inspiraram o livro, estabelecer diálogos com as
palavras e as imagens, proporcionando um mergulho na inevitável solidão urbana
das mulheres e no enfrentamento de seus dilemas cotidianos, crenças e valores,
para que elas possam se reconhecer e refletir sobre seus espaços íntimos de
força e criação. Neste processo de identificação, as mulheres serão convocadas
a produzir suas próprias poéticas, multiplicando os saberes por meio do
compartilhamento dos seus processos de escrita e de criação de imagens. A descoberta da própria voz e a afirmação da
independência no eterno exercício de dentro para fora podem ajudar no
rompimento com as rígidas estruturas patriarcais em que todas nós estamos
imersas. Acreditamos que os recolhimentos desses novos aprendizados possam
colaborar na construção de novas sociabilidades e sororidade entre as mulheres.
O desdobrar de janelas e quadros abrirá novas imagens e tenho a certeza de que
todas nós iremos compor a poesia coletiva e socialmente necessária.
3 - Quando
e como se inicia os primeiros passos para a concepção do projeto? E como se dá
o seu encontro com a ilustradora Isabela Sancho?
Inicialmente a ideia era fazer uma plaquete com 11
imagens e poemas já construídos ao longo de 2018, fruto de um antigo interesse
e estudo pelas obras do pintor Edward Hopper. Mas por indicação da revisão crítica
da obra feita pela escritora e poeta Ana Rüsche o projeto ganhou outra
dimensão. Tornou-se um livro e um projeto de criação de rodas de leitura da
vida com as mulheres em situação de vulnerabilidade social a partir da
inscrição e premiação no PROAC Poesia de 2019.
Foram então selecionados 26 quadros que funcionaram
para mim como janelas, no qual debrucei meu olhar. O conteúdo da obra está
fundamentado e distribuído em dois eixos temáticos que se mesclam ao longo do
livro: poemas de desconstrução e recolhimentos do aprendizado e poemas de
construção e afirmação da liberdade.
Os poemas foram dispostos em sessões: em Trajetos os
poemas compõem a transitoriedade dos corpos destas mulheres em locais
provisórios e como são afetadas pelos espaços que as compõe, em Janelas elas
observam ou são observadas em seus processos de interiorização ou de exposição,
em Quartos elas realizam sua privacidade, experenciam suas clausuras, prazeres,
dores e intimidades, em Casas elas habitam seus domínios, refletem sobre a pose
de seus corpos/casa, estabelecem territórios e defesas, afirmam ou negam os
processos onde a solidão feminina é o fio condutor para o aprendizado da
solitude.
Das escolhas dessas imagens foram criados os poemas e
as ilustrações correspondentes O processo com a Isabela Sancho para a criação
das ilustrações, foi realizado de duas formas: Primeiro os desenhos foram
totalmente baseados nos quadros de Hopper que selecionei e enviei a ela, eu
pedia que ela preservasse apenas algumas marcas que julgava importante das
cenas, mas o resto ficava por conta da poetica dos traços da Isabela em contato
com as imagens de Hopper e ela fazia sua recriação. No segundo momento, as imagens
de Hopper foram acompanhadas junto com os poemas já criados, e sempre que os
desenhos retornavam a sintonia com os poemas era impecável, cada vez que
recebia uma ilustração tudo estava no lugar certo, os gestos interpretados com
precisão, os jogos de lua e sombra, os traços que recriam as cenas somente com
o estritamente necessário. Enfim suas ilustrações são outros poemas em diálogos
com os meus, aliás acredito que o desenho é uma outra forma de fazer poesia.
4 – Além de Edward Hopper são citados como referência para criação do seu livro: Emily Dickinson, Orides Fontela, Julia Galemire, “os devaneios poéticos de Gaston Bachelard” e a “visão sobre a janela” de Luís Antônio Jorge. De que maneira essas figuras somam à construção da sua poética?
Para além dos quadros de Hopper que inspiram narrativas diretas e intensas, as obras literárias de Emily Dickinson e de Orides Fontela foram fundamentais nos meus estudos, são poetas que também viveram dentro de suas casas, intimas da poesia muito mais do que das relações sociais com a vida, seja por opção estética ou por condição impostas. Sua escritas ensinam o silêncio e a essencialidade, talvez isto explique minha propensão aos cortes, as pausas para outras cenas e a concisão dos poemas.
Eu
tenho uma relação antiga com as janelas, meu primeiro blog na internet se
chamava Janelaria foi nessa época que conheci a obra do arquiteto Luis Antonio
Jorge que nos fala sobre a concepção e uso das janelas não só na história da
arquitetura, mas também como criamos nossas janelas pessoais para ler o mundo.
Penso
que o poeta da sua janela pode desenhar o visível e o invisível, pode ver a
rua, o mar, o vizinho, a cidade, mas também pode não ver coisa alguma e apenas
perder-se em seus pensamentos através daquele espaço que lhe invade. O que está
fora e o que está dentro, enxergar a janela ou ver da janela são alternativas
que penso estamos sempre escolhendo. Nos poemas usei esses recursos. Em “Por
dias” se vê de dentro para fora da janela a possibilidade de romper o espaço
íntimo esquadrinhado, já em “Transparência” se assiste de fora para dentro da
janela, do olhar público para o íntimo dos corpos e dos objetos da casa. Diante
de cada quadro de Hopper criei o meu recorte, a minha janela, e de lá escrevi e
rescrevi os poemas.
A obra
de Gaston Bachelar “Poética do Devaneio” também foi fundamental para a concepção
do livro, em suas análises sobre o devaneio poético (sonhos acordados,
lembranças, memória) e seus estados de alma ele escreve: Há palavras em que
o feminino impregna todas as sílabas. Tais palavras, podemos chamá-las
de palavras de devaneio. Pertencem à linguagem da anima.
O sonho
(rêve) é masculino e o devaneio (rêverie) feminino nos diz Bachelar. Acredito
no devaneio acordado a que ele se refere e para mim devaneio é o que fazemos
quando nos colocamos em estado de poesia. Todas aquelas mulheres escolhidas estão
em seus devaneios, não estão sonhando, estão acordadas e foi preciso debruçar
meu olhar para assisti-las e ouvi-las contarem suas histórias de vida através
das palavras femininas elas ditam.
5 - Pensando
no contexto da pandemia, como você percebe “Mulheres de Hopper” no
impacto do isolamento social?
Um
outro processo para a escrita do livro que intensificou a experiencia de
feitura do livro foi a pandemia que ainda vivemos passados mais de 01 ano
(diga-se de passagem nunca imaginada, quando da premiação do livro pelo PROAC
2019, podíamos ainda viver fora). Conceber o livro confinada, acabou por me
tornar uma Mulher de Hopper ensimesmada dentro da minha escrita, me colocou do
lado de dentro dos quadros literalmente, escrevi e lancei o livro em
confinamento. A ficção da obra sendo vivida na realidade. A intensificação de isolamento e solidão que
a obra de Edward Hopper apresenta e a temática do livro, acabaram por se
destacar nesta pandemia mundial. Hopper voltou a cena e o livro acabou despertando
muito interesse para além da literatura (especificamente a poesia), teve ótima
vendagem, mesmo que isolado na sua criação e com divulgação limitada pelas
redes sociais. Todos nós viramos de alguma forma uma Mulher de Hopper. Além
disso as mulheres de uma forma geral foram muito mais afetadas pela pandemia,
apesar de conviverem melhor com o estar dentro de casa por sua condição
histórica de “ser do lar”, sofreram muito mais a opressão masculina nas suas
vidas com os homens dentro de casa. Este livro traz mulheres reagindo a
opressão, mesmo que sozinhas e poder sentar em rodas de leitura da vida nesse
momento é algo de grande importância, todas nós estamos precisando criar
espaços de partilha e colaboração para enfrentar esse mundo pandêmico e
machista.
Taciana
Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport
Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura.
Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser
ouvir: Ter bondade é ter coragem.