Separação familiar, demonização das
ancestrais, apagamento da identidade, negação das origens, processos
segregatórios, ódio da própria imagem. Inúmeras foram as estratégias utilizadas
para silenciar e invisibilizar a mulheres negras e suas descendentes. Contudo
elas se organizaram, uniram forças e perpetuaram ritos, tradições e costumes em
um lugar propício para esse ajuntamento: o quilombo.
Herdeiras diretas desse símbolo de
resistência, 18 mulheres quilombolas, selecionadas entre os mais de 6 mil
quilombos existentes no Brasil, tiveram suas vozes ouvidas e registradas na
obra Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas,
sob organização de Selma dos Santos Dealdina. Nesse espaço, as autoras se fazem
ouvir já desde as primeiras páginas, pois cada uma teve espaço para agradecer e
reverenciar quem lhes permitiu chegar àquela instância.
O livro é uma ferramenta
imprescindível para potencializar essas vozes e saberes há séculos
estigmatizados e estereotipados pelo racismo que estende tentáculos pelos mais
diversos espaços. Os caminhos do livro são abertos por Ana Cleide da Cruz
Vasconcelos – Quilombo Arapemã, localizado em Santarém, Pará – com dois poemas:
“Mulheres da Amazônia” e “Povo negro”. Fechando a gira, encontramos “Mulher
quilombola em primeira pessoa”, capítulo formado por 5 prosas poéticas, cada
uma delas escrita por Dalila Reis Martins – Engenho II, Território Kalunga, em
Cavalcante, Goiás –, Mônica Moraes Borges – Território Étnico de Alcântara,
Maranhão –, Rejane Maria de Oliveira – Quilombo Maria Joaquina, Cabo Frio, Rio
de Janeiro –, Andreia Nazareno dos Santos – Grossos, Bom Jesus, Rio Grande do Norte
– e Nilce de Pontes Pereira dos Santos – Quilombo Ribeirão Grande/Terra Seca,
Barra do Turvo, São Paulo.
Tanto
entre os textos de conotação mais literária quanto os mais teóricos,
encontramos narrativas de mulheres de diversas profissões e vivências com
abordagens variadas cujas problemáticas estão relacionadas às lutas pelas
demarcações de terras, à morosidade da justiça, à falta de boa vontade
política, ao racismo institucional, à burocracia, ao feminicídio, à perseguição
política das líderes quilombolas e à dificuldade para o acesso à educação
básica e superior. Ademais, os enfrentamentos também se fazem presentes nas
tensões e nos conflitos com o agronegócio, na especulação imobiliária, com as
forças armadas, na resistência à instalação da base espacial de Alcântara, na duplicação
de rodovias, na construção de usinas nucleares, no combate aos crimes
ambientais e na expansão econômica. Nesse sentido, se fazem pertinentes as
palavras de Selma dos Santos Dealdina:
A
EXISTÊNCIA DOS QUILOMBOS na História do Brasil representa um projeto de
partilha, de viver em comunidade, de construção do território enquanto
coletivo, compartilhando o acesso a bens, em especial à terra. Sem mobilizar
esses conceitos, o quilombo constitui-se em um projeto de alternativa ao
capitalismo, de reforma agrária e socialismo, como tem afirmado Givânia Maria
da Silva em diferentes contextos. Em 1888, com a falsa abolição, foi implantado
no Brasil um regime excludente, seguido por uma legislação cruel de acesso à
terra que, contrariando os princípios do quilombo, fortaleceu a concentração
latifundiária e a subjugação da população negra à condição de um não sujeito de
direitos.
Ou
seja, a violação de direitos é uma constante e é por isso que órgãos como a
CONAQ são imprescindíveis para atuar no fortalecimento, na frente de batalha e
na retaguarda, pois “Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta
com ela” – Coletivo de mulheres da CONAQ.
Vale
ressaltar que, entre tantas dificuldades, o quilombo não está isento de conflitos
internos, como chama a atenção Maria Aparecida Mendes – Conceição das Crioulas,
Salgueiro, Pernambuco. No capítulo “‘Saindo do quarto escuro’: violência
doméstica e a luta comunitária de mulheres quilombolas em Conceição das
Crioulas”, a autora incide luz para a referida problemática, abordando estratégias
de superação das mulheres quilombolas, dilemas pessoais, singularidades,
situações de vulnerabilidade, educação patriarcal, reprodução de práticas
machistas, misoginia e alcoolismo. A narrativa de Maria Aparecida é essencial
para que entendamos que os quilombos não vivem em uma eterna harmonia.
O
pluralismo jurídico e proteção da identidade étnica e cultural quilombola,
defendidos por Vercilene Francisco Dias – Vão do Moleque, Goiás – desmistifica
e combate os estigmas sociais, trabalhando para fortalecer o autorreconhecimento,
a autoestima, o orgulho das origens e o pertencimento:
A
negação da identidade quilombola era algo normal na comunidade Kalunga, uma
forma de proteção contra certos estigmas sociais – pois o quilombo continua a
ser estigmatizado socialmente, assim como, no passado, a própria ideia de
quilombo era considerada criminosa pela sociedade escravista. Na lógica
escravista, o quilombo era visto como um aglomerado de criminosos contra a
sociedade, e escravizados que se reunissem em uma comunidade de negros para
lutar contra as opressões do sistema sofriam duras penas. Devemos lembrar que a
referência popular ao termo “Kalunga” na nossa região, num passado não muito
distante, era sinônimo de algo menor, mau; o kalungueiro era desprezível e
pequeno, alvo de chacotas por onde passava. Essa caracterização nos
fragilizava, nos tornando alvos fáceis.
Destarte,
é necessário compreender a trajetória de resistência, as realidades, as
estratégias de proteção, as falácias e as mentiras construídas para deturpar a
imagem do povo dos quilombos. Assim, poderemos nos juntar nos cruzamentos de
lutas de movimentos étnicos e movimentos de mulheres que buscam soluções
coletivas para as problemáticas através dos diálogos entre os quilombos. É
imprescindível termos em mente que os quilombos exigem um olhar diferenciado de
nossa parte, pois temos que considerar inúmeras especificidades e
singularidades. Logo, o que se aplica aos centros urbanos não necessariamente
se aplica – ou se aplica da mesma maneira – a esses espaços de herança e
resistência.
Selma dos Santos Dealdina é mulher quilombola do Angelim III, Território do Sapê do Norte, no Espírito Santo. Vem trilhando uma trajetória expressiva de engajamento em coletivos e movimentos sociais, como a Coalizão Negra por Direitos, a assessoria da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo (Zacimba Gaba) e o Coletivo de Mulheres da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), da qual atualmente é secretária executiva.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. A referida novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.