por Rebeca Gadelha__
O lago, ilustração de Rebeca Gadelha |
Ela abre os bracinhos e sorri um sorriso sem dentes
que é a definição de alegria, balança as perninhas roliças e inclina o corpinho
na direção dele: se pudesse, pularia. Estas são as expressões que ela reserva
só para o papai. O papai que não troca uma fralda. O papai que não dá de comer,
nem gasta tempo na preparação de suas sopinhas. O papai que não acorda no meio
da noite com seu choro. O papai cuja vida permanece assim, quase inalterada,
com os olhos fixos no futebol da tevê.
O papai sorri para ela e a pega no colo vez ou
outra, fazendo caretas que aumentam os sorrisos. Papai, tua ausência
onipresente me preocupa — eu, que nada tenho a ver, mas me vi encantada por
essa criatura que não compartilha nem sangue nem nome comigo. Papai, se um dia
as coisas ficarem feias com a mulher com quem você se casou, se ao olhar para
ela perceber que não a conhece, nem sabe porque ainda está ali, você se
lembrará da menina que sorria ao te ver? Se um dia você partir, ainda escolherá
significar algo para menina que você ajudou a trazer ao mundo ou se contentará
em ser apenas fantasma — espectro — ausência?
Rebeca Gadelha é otaku, gamer e artista digital. Formada em geografia pela Universidade Federal do Ceará, tem um fraco por criaturas peludas e gorduchas. Trabalha com edição de vídeo do Literatura & Libras (@literaturalibras), diagramação de livros e na organização de projetos literários no Selo Mirada. Reminiscências (Selo Mirada, 2020) é o seu primeiro livro.