De veredas e bulgaris, crônica de Marta Viana

 

por Marta Viana__


Jr. Korpa


                                                                            “Sé que estoy escribiendo para exorcizarme...”

                                                                                                    El Ojo de la Mujer, Gioconda Belli



Os que nascem de parto natural têm, nesta experiência, o primeiro caminho de fogo de suas existências. O trajeto, que dura horas avançando em lentidão milimétrica, deixa perceber o quão fantástica é a natureza. Neste instante finaliza-se a maturação do bebê, garantindo aptidão física para a sobrevivência. O ar percorre seus pulmões, então, pela primeira vez, dando-lhe a sensação de incendiá-los, a luz fere seus olhos por tão grande intensidade, a temperatura que o envolvia cai drasticamente, o som o alcança sem intermediários. Para partos difíceis existe o temido fórceps, que salva, quando não mata. O fórceps garantiu minha primeira trilha em busca de ar, espaço e luz. Minha vereda de nascimento contou com esta espécie de tesoura, com pontas em forma conchas, que me arrancou do ventre materno. 


As crianças de minha época, criadas aos cardumes, em grandes famílias norteadas pela cultura fraternal, tinha um espaço singular de quase desimportância, mas de muita liberdade. Cresci de pé no chão em um quintal mágico, na companhia de meus irmãos, cercada por bichos domésticos, outros nem tanto, como uma cobra e um tiú, subindo em árvores e muros, desenhando o corpo com tatuagens passageiras dos acidentes de percurso. Nas férias as paragens eram outras: uma casa de veraneio em Marjolândia, o sítio Gravatá, também em Aracati, e a serra da Guaiuba. Subir e descer morros, trilhar falésia furta-cor, mapear a areia branca da praia em busca de búzios e estrelas-do-mar, contrastava com o pega-pega nos troncos esparramados dos cajueiros gigantes, andar de charrete puxada a burros, sair em bando para banhos gelados de levada, pescar em açude, caçar borboletas com redes improvisadas, empinar pipas com cerol. Percorrer mentalmente esta infância me dá fôlego pra vida, e a revisito sempre que necessito força e inspiração.


O colégio e as festas do bairro, as famosas tertúlias, deslocaram-me para a grande novidade: a necessidade de me colocar na estrada em busca da minha singularidade. Mas o que seria isto mesmo?! Não bastasse um corpo que necessitava descobrir-se, um coração que queria sair de mim, sem que o pudesse mais governar. Abandonar a confortável torre panóptica, da qual via o mundo em relativa segurança, pra ter que mergulhar, sem nem saber direito nadar dentro daquele oceano de novidades. Não foi fácil para mim, assim como acontece para os de natureza tímida e introspecta. Trilhei os primeiros e singelos amores dos quais guardo boas lembranças e muitas dores platônicas, desencontros comuns dos corações no aprendizado do amar. A descoberta dos amigos, para além da família, assim como o significado da amizade, me mostrou a alteridade e ampliação de horizontes, de outros mundos e realidades, outras formas de ser, amar, sentir alegria e dor.


O caminho mais amargo a trilhar na vida, um sendeiro sem volta, foi experienciar a morte de pessoas queridas. Quando alguém que amamos morre morremos juntos. Entendo quando alguém por vezes desiste de viver frente tão grande dor, julgando-se incapaz de continuar. É necessário reinventar a vida para que possamos voltar a viver, uma espécie de renascimento.  Quando minha vó Alzira partiu, partiu-se também algo dentro de mim. Lembro-me de um sonho que tive com ela. Nele olhámo-nos e, sem palavras, disse-lhe chorando a falta que me fazia. Ela, então, pegou-me pela mão, e caminhando pela casa, apontou para todos os seus lugares de costume, afirmando continuar ali. Isso me trouxe paz.  Meu avô, o homem mais doce de minha vida, levou consigo um taco grande do meu coração. Meu pai, meu primeiro grande amor, morreu de um ataque de coração fulminante. Não o vi morto e aceitar concretamente sua morte levou muitos anos. Minha mãe, minha Xamã, quando se foi operou em mim a superação do medo da minha própria morte. Sabê-la em outro plano empoderou-me a seguir mais serenamente os passos na mesma travessia. Percebi, enfim, que trago todos tão juntos a mim, que ao guardá-los são eles que me guardam.


A maternidade foi, sem dúvida, a vereda de maior sentido e beleza da minha vida, mas que me transportou, com o meu consentimento, ao abismo de mim mesma. Foi coisa muito forte e linda a de ser habitada por meus bebês. Olhá-los nos olhos pela primeira vez me fez sentir como que invadida por uma onda de amor, ter a certeza de que tínhamos de nos encontrar, de sermos a mãe e os filhos certos, eu deles e eles de mim. Partilhei tudo isso com meu companheiro, um pai amoroso e presente. Desejamos e amamos juntos estas duas crianças, hoje já trilhando seus próprios caminhos. Por escolha nossa como casal, assumi a casa e o lidar diário e intensivo das crianças e seus afazeres. Ser esta espécie de mãe total, em bela capa de amor e proteção, fez-me abrir asas enormes e até sufocantes sobre a casa e as crianças, e abandonar-me como um ser desejante, sonhador dos meus próprios sonhos, sem espaço para a antiga alegria de encontro com meu companheiro de estrada, e com a vida. O ninho vazio realçou o esvaziamento de mim mesma. Sinto-me dilacerada, como que atingida por um tiro de canhão, no meio do peito, partida em mil pedaços, milhares deles. Pequenos pedacinhos que, de tão diminutos, ao primeiro instante não se vê nada além de pó. Tudo e nada, voando como poeira, revelado por um fortuito raio dourado de sol.  As escolhas sempre nos impõem perdas. Do caleidoscópio das várias possibilidades, e nós de nós mesmos. Só eu posso escolher o que desejo, o que preciso deixar morrer, ou viver. E o que mais desejo agora é puxar pra vida esta mulher que sou, que sempre fui, e que me torno a cada instante.


Escrevo este texto ao som de uma demolição. Quatro homens desmontam, sem parar, a casa vizinha. No primeiro dia retiraram todas as portas, janelas, grades, dispondo-as encostadas nas paredes que ainda resistem. Hoje iniciaram a retirada do telhado. Da minha janela vejo, no terreno cada vez mais desnudo, um pé de bulgari, um pequeno milagre entre destroços do que foram uma casa e tantas histórias. Esta espécie de jasmim tem flores brancas flocadas e perfume inebriante, com poder de despertar níveis espirituais adormecidos, segundo os alquimistas. Metaforicamente vejo ali meu coração, esperançoso. A esperança é a força motriz dos corações. As grandes mudanças acontecem no silêncio deles, enquanto bordamos nossas vidas. A teatróloga italiana, Lina Prosa, em recente trabalho na cidade de Fortaleza, pinçou com seu olhar atento, grafitado nos muros desta cidade, a frase: ”Reformar um coração custa muito mais”. Pois meu coração segue, nesta constante busca da felicidade, como os cangaceiros que chegavam às cidades cantando, adornados com anéis dourados, lenços vermelhos e perfumados, numa blindagem mística e de poder. Perfumo, então, todo meu corpo, a alma e minha história, misticamente, com as flores deste bulgari. Mas levo um fórceps na mão, em caso de necessidade.


Os caminhos da vida, de qualquer um, partem-se, aparentemente, em dois, mas são mais, são infinitos. A escolha concreta suprime todas as outras possibilidades do mundo. Se a vida que tenho foi uma escolha? Sim, em grande medida.  A questão clara pra mim é a qualidade e quantidade de significantes deste e todos os outros caminhos, trilhados ou não. Penso na frase de Guimarães Rosa “... para estas duas vidas – viver e escrever – , um léxico só não é suficiente”. Somos os escritores das nossas vidas, escolhendo o tempo todo caminhos, trilhas, veredas. Gosto de dizer que viveria tudo de novo como vivi até aqui. Tenho esta certeza em meu coração e estou em paz. A vida me sorriu e eu sorri pra ela. Meu coração canta com alegria a música da eterna Edith Piaf para o vivido e o que virá: “Non, rien de rien, je ne regrette rien...”.

 

 

 


Marta Viana é alguém que escreve, sem ser escritora, afetivamente sobre seu mundo, o que vê e sente a partir da sua janela. Ou, então, pode-se dizer que é sim escritora por escrever a própria história. Como traduziu Ferreira Gullar, a arte inventa a vida, porque a vida (só) não basta.