por
Adriano B. Espíndola Santos __
Janine
era uma mulher decente e deslumbrante. Ela passava pelas ruas e abria flores.
Os cabelos eram a continuação do vento. Nem mesmo Soriano teve o poder de travar
as suas asas. Como se diz, ela voou plena; fez o que fez para o regozijo da
alma. Falo com propriedade porque, além de cunhado, morei dez anos a quatro
quadras de sua casa; e, principalmente, fui seu amigo íntimo. Senti tanto dó
das crianças. Criança é modo de dizer; já eram crescidos, quando a mãe partiu.
O mais velho, o Cezinha, tinha dezenove anos, e o mais novo, o Lucinho, já
maior, com dezoito, recém-completos. Mas quem conhecia e compartilhava um pouco
de sua angústia sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela poderia voar em
definitivo. No começo dos anos setenta, Janine se firmava na cidade como uma
artista respeitada, ainda com vinte anos. Atuava em peças de figurões como
Clotilde Alencar e Augusto Parente. Eu era seu fã. Assistia às peças com a loucura
de um jovem sonhador. E nunca imaginava que ela pudesse se engraçar com o
Soriano. Na minha casa, só eu e Veridiana líamos e gozávamos com os prazeres da
literatura. Papai, sempre muito ocupado com processos, dizia que o tempo era
escasso para se perder com porcarias. Chamava-nos de lunáticos; que não daria
futuro a ninguém viver no mundo das ilusões – ainda escuto a sua voz grave e
reprovadora. Coitada, minha mãe, dona Alcina, fora criada e preparada para
cuidar exclusivamente de casa e dos filhos; ela, também, de uma linhagem
rígida. Soriano era o queridinho do papai, porque se mostrava além da conta,
como homem correto e disciplinado. Enveredou, com os aplausos do chefão,
seguindo os passos do avô, pela carreira militar. Logo dividimo-nos, cada um
para o seu lado. Ele se mudou para o Rio, para estudar na Escola Naval. Papai, a
despeito da felicidade, ficou desalentado por longos dois anos, até o retorno
do filho amado. Nessa época, eu participava dos eventos de teatro. Primeiro,
como contrarregra. Subi ao posto de produtor e, apaixonado, atuei como ator, na
peça Hamlet, ao lado de Janine Ferraz, no papel de Horácio. Lógico, como havia
de ser, minha amizade com Janine se tornou intensa, verdadeira e amorosa. Em
casa, ninguém, fora Veridiana, sabia das minhas atividades clandestinas. Seria
uma desonra para o meu pai ter um filho, como dizia, “vagabundo”; “sem
orientação na vida”. Já bastava a desgraça de estudar Letras, que era, para
ele, curso de mulherzinha. Engolia seco e aturava a minha inclinação para as
letras: “que seja pelo menos poeta, que nem o seu grande e aclamado bisavô”.
Veridiana se afoitou em prestar vestibular para medicina – ia fazer na surdina
–, mas, no último instante, foi barrada pelo pai. Não sucedeu severo trauma,
para ela, ter de migrar para o curso de Letras, sendo minha companheira de
sala, inclusive. Ela pedia que eu tivesse cuidado, que papai já suspeitava de
umas atitudes minhas insurgentes. Ouvira, numa dessas tardes acaloradas, que
ele estaria me investigando e que, se fosse preciso, me entregaria “de mão
beijada” para os militares. O cerco era tão ostensivo, que ele fiscalizava os
meus livros, dizendo que mandaria tudo para o fogo se encontrasse uma “laranja
estragada” no bolo. Em casa, portanto, nada de temas de esquerda e coisas
afins. Éramos castrados desde o berço. À medida que a peça ganhava expressão,
eu me via entre a cruz e a espada. Era um tormento quando me avisavam que a
minha cara estaria estampada em página de jornal, ou que poderia sair em outdoors.
Com medo de sofrer um atentado, desliguei-me da companhia Deus do Sol. Augusto
Parente prometeu que falaria com o meu pai; que isso não era possível, ter um
talento desperdiçado; que eu não podia largar uma paixão assim, no auge, como
se não fosse nada. Desentendemo-nos feio. Na verdade, desliguei-me e fui posto
para fora, simultaneamente, porque, para ele – com toda a razão –, teatro era
um ofício sagrado; era meu dever superar qualquer barreira. A única que ficou
ao meu lado foi Janine. Ela me acolheu e pontificou que logo essa loucura de
militarismo passaria e eu voltaria à cena. Janine já frequentava a minha casa
há pelo menos um ano. Mamãe gostava de sua figura simpática. Preparava café com
bolo de milho toda vez que a avisava que Janine apareceria. Papai não
desconfiava que recebia em casa uma subversora, uma anarquista. Por via das
dúvidas, ele ficava escondido e não se misturava com a minha turma; também não
atrapalhava, pelo menos. Mas, na bendita primeira semana do retorno do filho
ilustre, Janine pôs o pé na porta e deu de cara com Soriano. Ela não disfarçou
um certo incômodo e uma vergonha que não tinha. Não posso negar, Soriano
voltara mais bonito, com o corpo bronzeado, atlético, e um bigode robusto e alinhado.
Tinha um quê resoluto de Tarcísio Mera, esta é a verdade. Uma atração fatal que
eu quis, de pronto, desfazer. Contudo, não havia jeito, Janine estava
perdidamente apaixonada, e Soriano também. “Janine, meu irmão é militar; é
dessa raça que está estraçalhando o país. Você está louca? Ele parece não ser
linha dura nem nada, mas eu, que sou irmão, não confio. É melhor você cair fora
dessa o mais rápido possível, enquanto é tempo!”. “Claudino, seu irmão pode não
ser igual aos outros. Nem todos os militares são iguais”. Bem, não preciso
dizer muito; ela foi sugada pelo conto do homem fardado. Não sabia que ainda existia
essa tara por homem fardado. Logo Janine, que lutava nas trincheiras da
esquerda?! Além de tudo, deu-me um nó na cabeça. Eu praticamente não conhecia o
meu irmão, somente que era correto, calado, militar, e que era os quereres do
meu pai. Seria possível que eu estivesse enganado? Soriano deveria voltar ao
Rio em duas semanas. Ainda acho que a paixão é bicho traiçoeiro, eu mesmo nunca
confiei nisso. Janine virou uma pessoa sem alma, guiada pelos laços do meu
irmão. Eles se arranjaram em duas semanas. Casaram-se de papel passado. Ela se
mudou para o Rio com a justificativa de que lá haveria oportunidade, inclusive,
de aprofundar os estudos em artes cênicas; que seria uma grande atriz,
conhecida nacionalmente. O sonho, pelo que sei, virou um pesadelo. No primeiro
ano, mantínhamos correspondências, e ela dizia estar cheia de ânimo para atuar;
que o Soriano era um amor, um presente caído dos céus. Mas, no segundo ano,
veio o primogênito, e as urgentes obrigações a tiraram de cena – a cena de sua
vida. Já não falávamos com frequência e, quando ocorria, mês sim, dois não, percebia
o tom desencantado; e a sua resposta era que estaria muito cansada da labuta
familiar; que o marido passava muito tempo longe e, por isso, a sobrecarga vinha
sobre si. Ela estava triste, e eu a entendia, pois não arrumava meios de
cumprir os seus planos. Por mais que amasse Cezinha, ela nunca teria pensado em
ser só mãe; ela queria ser mãe e tudo o que fosse possível; ela era o mundo. Eu
sentia falta de sua vivacidade e de sua alegria. Mais um ano se passou, e a
novidade era que estava grávida do segundo filho, Lucinho, sem a presença do
marido. Soriano quedava tempos embarcado, rodando o Brasil. A muito custo,
descobri que viviam numa casa simples, na zona norte daquela cidade, sem que
Janine pudesse descansar dos afazeres porque, segundo Soriano alegava, não teria
dinheiro para esse luxo. Havia uma artimanha implícita, que só eu enxergava e
tentava colocar na cabecinha da mulher ainda apaixonada: Soriano armava para
que ela continuasse assim, trancada e ocupada. Eu me ofereci para pagar a
ajudante, mas a resposta veio da boca do Soriano, que, na primeira chance, uma
das únicas em que nos falamos, ele disse que eu não me metesse nas questões de
sua família; que eu não teria cacife para aguentar. Fiquei pensando: aguentar o
quê? Isso foi uma ameaça? Sim, era uma ameaça. Janine já não falava comigo. Depois
de quase dez anos no Rio, voltaram a Fortaleza, e se estabeleceram no bairro
Água Fria – ou seja, longe, muito longe do Benfica. A razão, conforme soube
pela boca de mamãe, este lugar teria se transformado num antro da imundície; de
tudo que não presta de gente desvairada. Janine, a essa altura, estava com a
carreira enterrada; isso me dava uma dor tremenda. O que sobrou de nós? Quando
a vi por acaso na casa de meus pais, não reconheci a minha amiga, e, sim, uma
suçuarana escondida no mato, sem querer se mostrar; alheia a tudo e arredia;
vigiando e correndo de cima a baixo atrás dos meninos. O marido, o eminente
senhor Soriano, permaneceu muito bem sentado na cadeira de balanço do nosso pai,
com o velho a tiracolo, conversando sobre a grandiosidade das forças armadas,
odiando a premente passagem da ditadura para a democracia. Janine, além do
mais, era um fiapo de gente, um sibite baleado, e eu me indignava com o fato de
que aquela mulher estaria prestes a sucumbir, a não mais aguentar esse peso que
a vida lhe entregara. Um gravíssimo erro, talvez o maior que cometi na minha
parca existência – sim, eu me sinto responsável também. Se eu soubesse, nunca
teria deixado que ela, uma luz divina, se casasse com o meu irmão. Por
insistência de meu pai, meu irmão renunciou ao orgulho e se mudou para perto de
nós, no bairro de Fátima. Eu pensei: “Bom, pelo menos estaremos próximos e,
assim, ajudarei de alguma forma”. Ocorreu o inesperado: Soriano encastelou a
família de uma maneira tal que era impossível romper as paredes do seu
magnífico lar. Nesses dez anos em que eu sentia somente a fumaça de suas
existências, reunimo-nos talvez umas dez vezes, uma por ano, em determinados
eventos familiares. E eu acompanhava a degradação humana de uma mulher que foi
a mais linda da cidade. Ela se furtava ao meu contato. Se eu chegasse perto,
ela, como um bicho acuado, se metia pelos quartos, para ficar com os meninos;
dizia que teria de dar remédio, botar para dormir; ou seja, mil desculpas eram
empecilhos para a nossa amizade. Na manhã seguinte a Lucinho completar dezoito
anos, a notícia veio cedo arrebentar o dia na minha casa: Janine havia fugido,
sem deixar pistas. Nem pensei nas crianças; para mim, era um alívio. Não eram
mais crianças, eram seres independentes, criados e taludos. Soriano mobilizou
todas as forças policiais para prendê-la. Foram dias de buscas, até mesmo em
outros estados: e nada. Era premeditado; muito bem premeditado. Esperou o caboclo
cair bêbado, com a comemoração do aniversário do filho; deu um jeito de que
Cezinha e Lucinho saíssem para uma noitada, e escafedeu. Soriano afirmava que
era um crime, que ela deveria ser presa por ter atentado contra a sua vida;
gritava comigo, como se eu tivesse parte nisso. Nenhum fato se comprovou sobre
ela ter usado o artifício do “Boa noite, cinderela”. Ela não levou nem as suas
roupas. Não queria nada além da liberdade. Bem-feito. Hoje, passados doze anos,
meu irmão está todo entrevado, acabado, um zumbi entregue à bebida. Os meninos,
já adultos, socorriam-se comigo, nalguma necessidade; desprezavam a presença do
pai; culpavam-no de irrecorrível sentença. Estão casados agora. O mais velho
mora no Rio; não aguentou as lembranças da mãe. O mais novo é o desgosto do
pai: ator. E eu o apoio em suas aventuras, como se as estivesse vivendo. São
meus filhos, meus amores. É nisso que dá enfrentar a natureza de pássaros de
arribação.