por
Rafael Silva__
[EM TOM CONFESSIONAL E PROFÉTICO]
Estou no desafio de cada noite
evitando que o sono escape pelos meus olhos semicerrados. Meu medo é que eu não
consiga dormir e tenha que ver o tempo passar. Por infortúnio, algo me desperta
os sentidos: ruídos. É um rato? É um rato. Coitado. O dia inteiro escondido à
espera do momento de sua caçada noturna, de sua busca por qualquer coisa que
possa remover a fome de sua barriga. Encontrou um xilito que deixei cair do
saco enquanto eu comia horas atrás. Não posso reclamar de sua presença aqui,
afinal eu o convidei, deixei a porta aberta e ali sua refeição.
Levanto-me, acendo a luz e lá está
ele atrás do meu móvel (um guarda-roupa desnecessariamente grande): incuido
entre o medo paralisante e a inquietude da fome. Rói o xilito, ávido, contra o
tempo. Não há muito! Ontem mesmo sua mãe apareceu morta no quintal. Penso em
assustá-lo, talvez, para ver se ele sai correndo dali e me livra desse incômodo
de ter um rato em meu quarto. É possível ficar mais assustado do que está? Ele
se infla e contrai acelerado, ao ritmo do coração. Ele todo parece o próprio
coração.
Posso até trazer algum cachorro para
cá e o rato possivelmente não sobreviveria ao retorno. Meus cachorros não
perdoam. Vide a mãe morta lá no quintal. E este que está comendo em ruídos
ainda é um filhote. Que pensamento mais mesquinho esse meu: como posso desejar
seu aniquilamento? Desisto da ideia. Estou aqui, parado olhando para o ratinho
assustado, comendo o xilito, certo de que não é vigiado. Sinto pena,
misericórdia e dó. Ainda assim, penso em matá-lo por mim mesmo, mas logo lembro
do remorso de agora a pouco em ver um mosquito e uma formiguinha zonzos se
retrocedendo [de dor? De agonia?] depois de eu vomitar veneno no ar.
Eu acompanhei a morte acontecendo.
Eu assisti aqueles minúsculos sofrendo. Como pude? Eu fui um assassino frio,
cruel. Como assim o sou todos os dias. Não somos todos? Mas, por quê? Piso em
formigas sem ao menos vê-las, sem ao menos considerar , antes do passo, que
algumas podem estar sob minha sola. Meto a mão, com uma força exagerada capaz
girar um homem, em um mosquito que inflinge uma pequeníssima dor em meu braço.
Esmago-o. Seu sangue é o meu. Seu sangue É o meu! Para quê? E o faço sem o
olhar nos olhos. Sou covarde demais para isso: para olhar nos olhos da minha
vítima. É só assim que viver se torna possível? Só assim a morte não se torna
uma barbárie? E a mortificação vai seguindo despretensiosa, acidental, casual,
não intencional. Crime culposo. Mas onde está a culpa?
Sinto que contribui para as milhares
de mortes que só hoje já ocorreram: por covid, por negligência, pelas tantas
fobias, racismo, negacionismo, neoliberalismo e tantos outros “ismos” que nos assolam e me assusta o que
irei profetizar: Atenção! Daqui a algum tempo estaremos bebendo e nos banhando
nas águas de chorume cadavérico dos nossos mortos de hoje. E o cheiro de morto
se impregnará em nossa pele e andaremos todos feitos zumbis vivos-mortos pelas
ruas da cidade gritando hipocritamente: Viva os mortos! Plantaremos sobre o
chorume. Regaremos nossas plantações com chorume. Colheremos a fruta nutrida
pelo chorume, nos lambuzaremos na fruta com gosto de chorume cadavérico
adocicado. E a morte será a cada dia aquilo que nos nutrirá, correrá pelas
nossas veias e fará nosso coração palpitar.
Não matarei esse rato. Não posso
matá-lo. Essa omissão será minha contribuição, minha resistência, meu “não”.
Sua vida será para mim símbolo de minha fraqueza e limite, convocadora de minha
humildade e solidariedade, será minha temperança e esperança. Vida longa ao
Rato! Vai, Rato. Vai-te vivo.
Rafael Silva - Jovem escritor sem gênero literário fixo. Escreve o que der na telha. Se quebrar o teto e rachar as paredes: é texto na certa. Metido a cantor. E essas coisas que faço por pura necessidade e amor me definem bem mais que as oficialidades de ser psicólogo, pós-graduando e outras convencionalidades dessas aí. Do Bom Jardim, Fortaleza/Ce. Filho de Virgínia e Wagner e neto de tantas avós e avôs.