A poeta
beta(m)xreis em seu livro de estreia, “dezessete” (editora Nega Lilu, 2021), escreve:
e quem me revista/ nada encontra e quem me/ visita não me topa e / quem me /
mira tenta/ mas não atira/ e perde o rumo de casa - (trecho do poema
curupira lula polvo lesma)
A entrevistada da coluna Falatório desta semana afirma: O fazer
político vai além do meu fazer poético, e estou plenamente ciente disso.
1 –
“dezessete” tece uma teia de referências e evoca memória e resistência: a outra ela/dezessete passos cambaleantes
estava, /lenta e ferida/ e se colocava assim no possível/ das coisas que
poderiam vir a ser/quiçá serenas quiçá sublimes. Como você descreveria o processo de criação
do seu primeiro livro?
O
desenho do livro começou ainda em 2018, inicialmente, por meio da recuperação e
listagem de produções daquele momento. À medida do processo, notando o teor de
meus poemas, os entrecruzamentos políticos, fui me sentindo convocada por mim
mesma. Em 2019, comecei a sentir a necessidade de fazer com que o desenho do
livro dessa conta da questão que me estava mais pungente: a ascensão do
bolsonarismo necrototalitário, que toma consequências inimagináveis em
2020/2021. Poemas que já existiam do período começaram a chamar por outros, que
foram sendo paridos ali mesmo, em 2019. Poemas mais antigos foram também
recuperados. A composição em dezessete partes, a reflexão da carta Estrela do
tarô, o passeio por elementos da natureza, coisas foram se puxando a outras.
Num processo semiconsciente, quis que meu primeiro livro dissesse do que é meu,
do que é nosso, e em respostas e maneiras de dar conta, e dizer: esse projeto
de morte encampado por eles precisa acabar, e eles não poderão simplesmente seguir
impunes fazendo o que bem entendem. Não dá.
2 –
Quem é beta(m)xreis? Sua formação acadêmica, mestra em Antropologia, dialoga
com sua escrita?
Sou beta(m)xreis,
eu mesma e múltipla, que assino em minúsculas pelo amor por e.e.cummings,
e que enfio aí letras de meus nomes, do nome que me foi dado e que reelaborei,
que uso como função matemática, função de aglutinação. Já tentaram demais me
enfiar em caixinhas, eu mesma já tentei demais me enfiar em caixinhas. Sinto que
quero poder ser tudo que posso ser, e aqui parafraseio Katherina Mansfield.
Sou alguém que, passeando pela dança, teatro, Antropologia, Tradução, e por
diversas outras experiências, passo a entender que é nelas que faço minhas
escritas, e elas se fazem escritas. Aproveito pra mencionar que o poema
“potlatch, sempre” é um bom demonstrativo disso, por ser completamente
atravessado pelo próprio ritual “potlatch”, brilhantemente elaborado por
Marcel Mauss em Ensaio Sobre a Dádiva. Vejo também isso se ecoando
em diversas das minhas formas de olhar para o mundo. Frequentemente me lembro
de minha leitura de Norbert Elias ainda na graduação, que passava pela
ideia de que a sociedade está dentro de nós, numa lógica próxima a que Lacan
trata da linguagem, como vim a saber anos depois. Os nossos campos de batalha
são dentro e fora. Os microfacismos nos habitam. Criar é um imperativo.
Destruir e refazer, dança de Shiva. E é assim, também, que entendo que poetas
fazemos subversão, artistas fazemos subversão, versões outras, novas
possibilidades. E isso também é política. O fazer de belezas, horrores, o ir
além, também político.
3 – Você costura múltiplas citações que se
conectam na elaboração da estrutura visual e temática dos seus poemas. Quem
você citaria como influência para construção dx artista beta (m)xreis?
Acho difícil
ponderar todas as minhas influências. Muitas são inconscientes. Cito alguns
nomes que me vêm à mente com mais força e frequência: Sylvia Plath, Hilda
Hilst, Allen Ginsberg, Drummond, e.e.cummings, Roberto
Piva, Clarice Lispector, Álvaro de Campos, Renato Russo.
4 – No
Poema 17 [Novo Documento de texto (7)] você escreve: e digam que é 17 é/ uma pistola/apontada/na minha cara. Você acredita que sua escrita como uma pessoa
de identidade não binária contribui a favor do reconhecimento da diversidade
sexual?
Não sei
se de fato contribui, mas espero que sim. Saí do armário quanto a minha
identidade de gênero no ano passado, em início de pandemia, com essa martelante
onipresença da morte. O impulso veio como: não posso morrer fingindo ser algo
que me impuseram. Esse gesto é meu, mas diz de uma luta tão além. Por enquanto,
espero o mínimo: condições mínimas de existência, direitos básicos para pessoas
trans, o que inclui respeito a especificidades. No fim das contas, a luta é
para que possamos ocupar plenamente todos os espaços que sempre foram negados.
Não sei se meu gesto contribui com isso. Penso que outras atuações são mais
significativas.
5 –
Você como multiartista pensa na narrativa poética além do gênero literário?
Toda
arte é poética, por sua laboração de mundos possíveis, na mídia que seja. Nem
toda arte é em si narrativa. De um ponto, pode se fazer um conto. Quando faço
poesia em palavras, quando escrevo poemas, tudo que sou está ali, ainda que em
partes. O mesmo é verdade para outras artes com as quais me envolvo. Penso que
temos formatos canônicos para a poesia (enquanto escrita), e isso é algo que me
grila. Formatos canônicos em geral me grilam. Não que minha medida seja a da
iconoclastia pura e simples. Apenas sinto que descaibo, e acho que isso é
potência. Busquei explorar um “tantim” de visualidade e espacialidade em
momentos, no que faço em poemas, no que fiz no “dezessete”, e quero seguir
fazendo isso.
6 – O
que você acha do boom de editoras independentes nos últimos anos para atender a
demanda de novos nomes da literatura nacional?
Movimentos
de descentralização tendem a me agradar. Considero o movimento de editoras
independentes extremamente positivo, e vejo esforços significativos para
formação de público leitor, formação educacional, e atingir diversidades
possíveis de públicos. É algo urgente e necessário. Coloco uma ênfase aqui na
situação atual, em que editoras são predadas por grandes corporações, o que não
chega a causar surpresa levando em consideração o momento atual do capitalismo.
O esforço das editoras independentes é tanto de resistência, como de criação.
Não posso deixar de mencionar o quanto a Editora Nega Lilu é
paradigmática para mim neste sentido, e o quanto admiro Larissa Mundim,
responsável principal pelas atividades. Acho que a busca é atender uma demanda
social, mas também abrir espaços tão necessários para a sociedade como um todo.
A arte é um bem maior, e é um direito básico.
7 –
Quem você destacaria na cena literária da região centro-oeste?
Destaco,
em especial, uma galera da goianidade: Dairan Lima, Rico Lopes, Coletivo
Fiasco e integrantes, admiro especialmente João Lepife e Rosa
Neves, Goiânia Clandestina e integrantes, com ênfase em Takaiúna e
Mazinho Souza, admiro também enormemente Áurea Denise, Fernanda
Marra, Tarsilla Couto de Britto e Yani Rebouças. Certamente
estou cometendo a injustiça de deixar de citar alguém, mas essas são as pessoas
com quem tenho tido mais proximidade, que acompanho trabalhos, e que me
alimentam em nossas criações de redes. Deixo pra citar por último Alda
Alexandre e Arthur Moura Campos, artistas que amo e admiro, e que
são editoria da Revista TEM BASE?! comigo, com nosso sonho de ecoar as
produções artísticas atravessadas pelas goianidades.
Não
conheço a galera do Mato Grosso ou do Mato Grosso do Sul ainda, infelizmente.
Quanto ao DF, sou apaixonada por Tatiana Nascimento, e gosto muito de Thiago
de Barros.
Pessoas
escreventes do Centro-Oeste, uni-vos! Me deem um oi, bora criar laços. É tão
importante fazer nosso movimento para além dos eixos clássicos de produção artística
deste país!
8 – Em
contraste e perspectiva como você entende o momento atual do país? O artista
consegue ou deve se furtar, neste cenário, de ser um cronista do seu tempo?
O
momento atual do país é uma tragédia anunciada. O momento atual do país é uma
calamidade de um nível que eu jamais imaginaria. Se para mim, que tenho
trabalho, casa, etc, já é difícil existir, imagina para outras tantas gentes? É
desesperador. Penso que não existe a possibilidade de se escrever fora do
próprio tempo, mas cada pessoa deve fazer o gesto que bem entende nesse
contexto. Penso que poéticas extremamente potentes podem, por exemplo, versar
sobre amor sem que isso passe diretamente pelas atuais questões políticas
candentes. E não vejo nenhum problema nisso. Tanto escrevo atravessada por
diversos assuntos, como me alimento de artes diversas, não apenas aquelas
diretamente conectadas com o atual genocídio em curso. Vale lembrar que nosso
país é o país do femicídio e dos genocídios: de populações indígenas, negras,
LGBT. Temos um agravamento e uma explicitação. Penso que, até por saúde mental,
e criação de outras potências, vale a pena beber de diversas fontes, e escoar
as águas que nos (des)cabem, e ecoar os sons que nos soem. Tudo isso nos
alimenta e pode nos fortalecer.
9 –
Tarot, arte-visual, Matilde Campilho, Valeska Poposuda, Clarice Lispector,
Tatsumi Hijikata, Lawrence Ferlinghetti e tantos outros “passeiam” na formação
de “dezessete”. No poema “em me
planto e me semeio” seus versos entoam: minha pele é meu território/e
meus terrenos vão além do rio
No seu
caso, o fazer poético é um ato de sobrevivência e coragem?
Sim e
não. Eu escrevo poesia há tempos demais, desde a infância/adolescência. Acho
que seguir foi um ato de “sobrevivência e coragem”, porque foi um dos (muitos)
jeitos que fui tentando criar para dar conta de tudo. Por outro lado, sempre
tive um considerável auxílio e suporte de minha família, e de amizades, para
segurar as mais diversas barras, enormes crises pessoais, etc e tal. Mesmo que,
vá saber, talvez por viver numa sociedade capitalista-patriarcal-colonial,
minha existência seja um peso. E eu sinto esse peso muito mais do que gostaria.
O fazer poético é, sem dúvida, para mim, uma necessidade, e se vincula a estar
viva. Mas, mais centralmente: seguir viva que é um ato de sobrevivência e
coragem. E o fazer político vai além do meu fazer poético, e estou plenamente
ciente disso.
Taciana
Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport
Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura.
Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser
ouvir: Ter bondade é ter coragem.