Textos do livro Desmantelo, de Natasha Silva Siviero

 

por Natasha Silva Siviero__

 




Querido diário,

 

Não fui uma criança precoce,

Não adulteci cedo demais,

nem envelheci antes do tempo

Vivi 30 anos em 30

 

***

 

Tive, no lugar de peitos, um ser vivo, dois seres vivos, de exato peso e estatura. Estonteantes, com a textura da seda, firmes e frescos, esculpidos a barro por um Deus de mãos grandes.

Passou a noite, entrou o dia. Acordei, e no lugar dos peitos, duas ameixas murchas. Em vez do barro firme, um tecido morto, de um balanço xôxo, amorfo

Você segura, eles despencam. Finjo que não ligo, por fora não sinto mais nada, por dentro é muito doído. No fundo, me pergunto: se soubesse que me custaria os peitos, teria amamentado os meninos?

Você, coitado, tenta fingir costume diante desses peitos novos, cata um cá, o outro lá. Junta os dois no meio com carinho, buscando nos dedos a memória do tato e nos olhos a memória do afeto, é triste. Por um segundo eles ficam bonitos e firmes, como na Era do barro, mas logo escorrem por suas mãos inúteis pelancas mortas.

***

 

Ontem foi a terceira vez que tentei pôr nosso pequeno na creche. Não consigo, doí meu corpo todo. Dormi com ele, sonhei que morria com um tiro na garganta. Meu irmão disse: força, Natasha, todas as mães sobrevivem. Mas a verdade é que nem todas. Algumas morrem pelo caminho.

 

***

 

Escreva uma carta para mim.

Comece pelo meu nome. De todos os nomes que você me chama, e todos os nomes que existem na Terra para se chamar o amor, bonita, docinho, benzinho, lindinha, minha deusa, quero ouvir o meu nome. Solene. Meu nome cru, sem diminutivos ou aumentativos, meu nome grave.

Natasha,

Gaste o primeiro parágrafo perdido. É perdido que se começa o amor. Conte da primeira vez que meu viu, tinha grama, era sol, e eu talvez usasse azul. Depois passe sem nenhuma vírgula, sem rodeios, sem inúteis conectivos para os meus cabelos, meus ombros, meus peitos de menina e meus peitos de mãe, e enfim você acabará ainda perdido, meu já entregue, rimando coxa com coxa.

Agora, entre na minha cintura, longamente minha cintura. Não exatamente minha cintura, mas o vale de amor que existe entre ela e o meu quadril. Ah! o meu quadril. Os ossos do meu quadril, a pele, a temperatura, o ritmo do meu quadril no seu controle, e fora do seu controle, e na sua mão e na sua boca.

A minha pele. A cor da minha pele no verão, a cor da minha pele no outono, o jeito dela, o toque dela, a minha cicatriz no pé e na mão, a minha pinta alta na barriga, meu cabelo de sal, meus dedos pequenos, meu umbigo pequeno que nem chega a ser engraçado como são os umbigos que não são o meu.

A minha bunda.

Você dirá ainda, com bondade, do meu humor, do meu hálito, do meu cheiro, da minha personalidade, do meu esforço de mulher, de mãe, e de amiga, do meu ouvido, do meu colo, do meu abraço, da minha voz.

E você terminará, perdido como começou, sem saber quando dar o ponto final, sem querer perder a hora do ponto, mas querendo ainda falar de outra qualidade, ou daquele defeito imperdoável que é o que você mais ama em mim, e que te lembrou, afinal, que você odeia quando eu faço aquela coisa, mas que pensando bem, agora, você adora, e que até falaria disso na carta, mas já vão se acabando as linhas.

A sua carta minha há de ter um borrado que foi uma lágrima que caiu quando você disse uma coisa tão bonita. E você terminará dizendo que não há, nunca haverá, nunca houve outra. Que nunca você foi de outra como você me é, que nunca outra foi tão sua.

 

 




Natasha Silva Siviero
nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo, em 1988. Formou-se em Jornalismo na Ufes e é celebrante de casamentos. Além de Desmantelo, publicou Baliza de Navio e Sarah Princesa. Instagram: https://www.instagram.com/natashasiviero/