O amor entre dois homens é
repreendido violentamente pelas famílias. Após a descoberta da relação, os
jovens são agredidos, rejeitados e expulsos de casa. À primeira vista, pode
aparentar não haver nada de muito novo em A
palavra que resta (2021), romance de estreia de Stênio Gardel, o enredo
contendo traços, tais como a rejeição e a violência mencionadas, que são
lugares comuns na ficção gay. Contudo, o livro do escritor cearense ganha força
em um elemento específico: a carta deixada ao protagonista, o analfabeto
Raimundo Gaudêncio, por seu amado após o fim do relacionamento.
Com publicações em coletâneas de
contos, como Farol (Editora Moinhos, 2017), Mirabilia (Editora Labrador, 2018), Limiar - delírios cruzados (Editora Chiado, 2019), entre outras,
nota-se de largada no primeiro romance de Gardel que o autor tem uma escrita
marcada por um certo lirismo. Voltada para o âmago do personagem, se poderia
dizer que a prosa do ficcionista é delicada ou sensível – adjetivos que
normalmente perseguem mulheres cuja ficção aborda a exploração da vida
interior, mas são raramente aplicados a homens que fazem o mesmo, como, por
exemplo, João Anzanello Carrascoza. A
palavra que resta assume um tom íntimo para explorar a bagagem de traumas
do personagem através da memória de eventos passados, mas sem perder de vista o
aspecto social.
O trauma de Raimundo não está ligado
a um grande acontecimento histórico, mas à experiência de homens gays e pobres
na sociedade brasileira. Na obra, Gardel
trata não só do preconceito vivenciado por pessoas da comunidade LGBTQIA+, mas
também de questões de classe, em especial a falta de acesso ao ensino pelas
camadas sociais mais baixas. Sobre este último, o ato de assinar o próprio nome
tem valor significativo no romance. O leitor é introduzido a Raimundo
justamente no momento em que o personagem escreve seu nome completo pela
primeira vez, expressando o desejo de estudar carregado a vida toda –
"vontade, tinha sim, desde menino, mas o pai lhe dizia que a letra era
para menino que não precisava encher o próprio prato." Já a respeito da
homotransfobia, se destaca na narrativa a personagem de Suzzanný, uma mulher
trans; figura que, curiosamente, tem aparecido com maior frequência na
literatura brasileira contemporânea. Mulheres trans também estão nos romances Nada digo de ti, que em ti não veja (2020),
de Eliana Alves Cruz, e Morte Sul Peste
Oeste (2020), de André Timm. Ambos lançados, assim como A palavra que resta, no último ano.
Cabe também salientar como, apesar
de a narrativa se passar no interior do país, Gardel não cai na armadilha de
estereotipar a experiência homossexual fora do espaço urbano. A dicotomia
campo-cidade, na qual o primeiro é apresentado como um espaço de atraso e o
segundo como progressivo, não aparece aqui. Há no romance, dentre personagens
gays e heterossexuais, diferentes reações à homossexualidade. Neste sentido,
chama especial atenção no enredo o motivo da homofobia do pai de Raimundo, que
quebra as expectativas do leitor e escapa de uma visão maniqueísta do assunto.
Aqui, o medo, e não o ódio, funda suas raízes no amor, na preocupação e nos
próprios traumas da figura paterna. Neste último se encontra a instigante
possibilidade de pensar o sofrimento de Raimundo como um trauma herdado,
estabelecendo um elo entre ele e outros homens gays em sua linhagem familiar.
É a carta deixada por Cícero, amor
perdido de Raimundo, que movimenta a trama. No presente da narrativa, Raimundo,
aos 71 anos de idade, decide realizar seu sonho e se alfabetizar para enfim ler
a carta, recebida quando ainda tinha 19 anos. Assim, a história é movida pelo
mistério do que a correspondência guardada há mais de cinco décadas pode dizer.
Haveria algo entre as linhas que teria mudado a vida de Raimundo tivesse ele as
lido anteriormente? Essa dúvida assombra o protagonista em sua batalha, e
depois hesitação, em ler as palavras deixadas por Cícero.
"Tu
quer aprender a ler e escrever, Gaudêncio? te ensino." A promessa feita
por Cícero a Raimundo volta repetidas vezes no romance. Aquele que estudou alfabetizaria
o que teve seu acesso à educação negado. Assim, o maior gesto de amor na trama
está na partilha da palavra. Cícero se foi antes de ensinar Raimundo a ler e
escrever, mas não sem deixar para trás a motivação para o personagem alcançar
seu sonho. A ternura da carta, desse modo, não está naquilo que diz, mas no que
a possibilidade da leitura representa: uma promessa cumprida. A palavra que resta no romance de Gardel é
amor.
Nem
remetente nem destinatário, manchado, amassado. O envelope em tempo de partir,
como estaria a carta? As letras ainda carregavam o vigor do braço de Cícero, o
vigor com que ele abraçava Cícero de volta? A carta separava e ligava a vida
dos dois. Palavra danada! Era a voz do fim, eco de passado não vivido. Se
tivesse brigado mais, se. E era o último elo com Cícero. Sopros de sonho
arrepiando a nuca, a realidade lambendo o desejo. Tu quer aprender a ler e
escrever, Gaudêncio? te ensino.
Allysson Casais é doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Fotografia: Kzenato