por Adriane Garcia___
“O
Ausente”, romance que integra a trilogia Náusea, de Edimilson de
Almeida Pereira, conta a história de Inocêncio, um homem que vive no meio
rural e se torna o rezador e o curandeiro de sua comunidade por predestinação. Durante
os partos, raramente acontece de o bebê nascer envolto pelo saco amniótico e,
em alguns lugares diversos do mapa, desde épocas remotas, o fato é compreendido
como um sinal de proteção especial, resultando em um símbolo de sorte ou da
marca inescapável de curar. Inocêncio é um empelicado.
Em Ausente,
no curto espaço de tempo entre o final da noite e a madrugada, Inocêncio
reflete sobre sua vida e sobre uma decisão radical que deve ou não tomar. Entre
o destino e as possibilidades que não viveu, entre a obediência e a
desobediência, situa-se o seu mal-estar. Na cama, ao lado de Inocêncio, está
sua companheira Djanira, a professora, aquela que lhe alargou o mundo e lhe
mostrou que nem tudo precisa ser como é. Durante a leitura do romance,
acompanhamos a insônia incômoda de Inocêncio, que não dorme porque está prestes
a escolher. E escolher é também recusar.
É
interessante notar que o personagem muda de nome durante o romance. Inocêncio é
Inoc e é Esse de Agora – o nome muda porque o ser muda no tempo, seja porque
lhe nomearam, seja porque ele mesmo se renomeia. Os nomes do benzedor revelam a
transitoriedade de si e um sentido de metamorfose que perpassa toda a sua
reflexão: a do devir. Inocêncio dorme um para acordar outro. No seu mundo
marcado pela permanência, Esse de Agora talvez decida retirar-se da sua herança
e se refazer, pois descobre, ao visitar o moribundo e transgressor Zé Vítor, que
é possível transgredir e refazer a própria identidade, fora dos maniqueísmos. Inocêncio
rompeu um pacto e a escuridão da noite se traduz na agonia de uma velhice que
questiona sobre agir por conta própria, sobre fundar na ação uma declaração de liberdade,
mesmo quando pareça tarde demais.
Narrado
em primeira pessoa, ainda que em temporalidade condensada, o que Inocêncio
mostra é um tempo largo, profundo, que visita mistérios e arquétipos, um ritmo
que só é possível naqueles que se dão a observar a si mesmos e ao seu entorno.
Esse efeito é conseguido por meio da linguagem que o autor utiliza. Edimilson
de Almeida Pereira constrói narradores (Djanira também narra em determinado
momento) que não nos enganam. Estão mesmo onde dizem estar e passam pela
situação que descrevem. A língua que falam chega até nós porque há um exercício
muito atento de escuta. É o homem e a mulher do campo, cuja sintaxe se aproxima
da poesia. Assim, o autor conta para que o personagem possa contar:
“Nós,
pessoas em carne, osso e alumbramento, vivemos daquilo que nos contam e que nos
arvoramos a recontar. Por isso, esses, aí chegando – um pai, a mãe e o seu filho
deles – em muita carência, mas ajustados no seu transporte, merecem que os
escutemos.”
Ausente
é um lugar, é o nome da comunidade, mas pode também ser uma pessoa que se
ausenta da própria vida. Pela linguagem, Inocêncio faz a sua revolução noturna:
rememorar e contar seu auge e ruína, apresentar o antigo e o novo, desestruturar-se
e mostrar seu mundo desestruturado, mas em busca de outra inteireza. Seu
exercício noturno de reflexão aproxima os dois ofícios, o de curador e de
contador de histórias, pois na cura a palavra tem espaço primordial. O ausente Esse
de Agora é presente.
A fala
de Djanira (a Deja, semeadora de livros, filha de um semeador de árvores) é
feita de amor, crítica social, lucidez e resistência. Para ela, estudo é remédio.
Djanira mostra a opressão socioeconômica que se abate sobre os mais vulneráveis,
sem precisar localizá-la em uma cronologia exata, pois injustiça e violência
existem desde que o mundo é mundo; tanto que podemos reconhecê-las
imediatamente, nos dias de hoje, seja no medo das comunidades que vivem
próximas às barragens construídas pela mineração – e que a qualquer momento
podem destruir populações inteiras como se nem crime fosse – seja na ameaça
perene de perder suas terras para fazendeiros que contratam milícias para
abater os legítimos donos.
“Aqui
o ar é longo, as plantas crescem com argumentos. Crescem por gentileza, às
vezes penso que deveria ser por ódio contra os senhores abancados em mesas na
cidade, que atiçam o fogo contra nós – rios e matas e cavernas. Mas o Ausente é
uma sorte, ermo apartado fora do mapa.”
Inocêncio,
um homem que faz o balanço da sua experiência, busca um novo encaixe para
aquilo que, sozinho, já não faz mais sentido. Sim, ele, um homem religioso, um
homem feito para ser santo, desconfia dos homens santos e dos discursos
religiosos, duvida do deus que lhe contaram e duvida até mesmo da simbologia de
sua marca de empelicado. Se a tradição lhe dita uma essência, a liberdade a
nega e prega uma existência.
Edimilson
de Almeida Pereira, que também é pesquisador de culturas e
religiosidades afro-brasileiras, traz para a narração de O Ausente, muito da
escuta alcançada e registrada no seu livro de estudos antropológicos, Mundo
encaixado, escrito com Núbia Pereira de Magalhães Gomes. A religiosidade tem
papel central nessas comunidades e se entrelaça com todos os outros temas:
“A
vontade divina consiste numa determinação que delineia o desempenho humano,
evidenciando-lhe a precariedade. A religiosidade popular tem na resignação uma
resposta a essa determinação, mas trata-se de uma resignação que encontra no
sagrado sua justificativa. A força divina, capaz de gerar o universo, dispõe de
sabedoria para também gerenciar aquilo que criou. Desse modo, resignação e fé
se completam, uma vez que à aceitação segue-se a possibilidade da recompensa.”
A
insônia de Inocêncio vem questionar o primeiro e mais crônico aprendizado, até
que contraposto a outros encontros – os da ciência (Djanira), os de uma
filosofia rebelde (Anastácio – um teólogo sem religião), os do exemplo
divergente (Zé Vítor). Corajoso, ele enfrenta as questões da identidade e se coloca
o problema universal respondido de modo muito insatisfatório pelas religiões: o
do livre-arbítrio. “O Ausente” é um livro bonito, poético e profundo
sobre um auto resgate. E quando se conta uma história, sempre se pode também resgatar
um outro.
“EcceHomo
fala quando não deveria, penso. Mas dispenso logo essa ideia. Eu mesmo não vim
para tirar algo dele. Vim porque a ferida era minha. Não preciso de Deus, nem
do seo-sem-nome. Careço de um emplastro de alma. Se eu não me quisesse iludir,
iria eu mesmo buscar o assa-peixe. Punha no pilão e macerava com sal e gordura,
para dar liga. Enfiava depois, por minha conta e risco, num saco de pano virgem
e tatuava sobre a minha dor. Enquanto isso, liberava deus para ir no açude,
escolher um caniço e soprar sua música.” (p. 83)
***
O
Ausente
Edimilson
de Almeida Pereira
Romance
Editora
Relicário
2020
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.