por Iaranda
Barbosa__
Ancestralidade,
simbologias e autoafirmação em Os nove pentes d’África, de Cidinha da
Silva
Embora
considerado (pela própria Cidinha da Silva) um livro (o seu primeiro) voltado
para o público infanto-juvenil, “Os nove pentes d’África” é uma
obra destinada a qualquer leitor em busca de aprendizado, emoções, reflexões e
autoconhecimento. As simbologias dissolvidas na tessitura da narrativa estão
representadas, entre várias outras, pelo barco, pelo rio, pelo canto, pelas
plantas, pelas ervas, pela água e pelas cinzas. Os pentes- presentes e cada símbolo entalhado
nesses objetos estão intrinsecamente relacionados à ancestralidade que, por sua
vez, é trazida à tona pelas questões mnemônicas.
A
voz narrativa homodiegética pertence a uma menina capoeirista, neta de vô
Francisco, personagem principal e idealizador de uma grande proeza: construir,
literal e metaforicamente, a árvore genealógica da família ao plantar uma
roseira para cada filho nascido. Digo proeza porque para nós, negros, faltam
muitas peças do quebra-cabeça de nossa história já que, no fim do século XIX, o
então ministro Ruy Barbosa mandou queimar todos os documentos
relacionados à escravização. Assim, para a grande maioria de nós, todo e
qualquer vestígio relacionado à nossa origem transformou-se em cinzas. Vô Francisco, então, cria o seu próprio ponto
de partida e deixa para a posteridade árvores que florescem.
O
protagonista criado por Cidinha da Silva é muito mais que um símbolo de
resistência. Não por acaso, vô Francisco é escultor, profissão essa que se
choca diretamente com o epistemicídio do povo negro, historicamente acusado de
não ter capacidade nem propensão ao sensível nem tampouco ao pensamento
científico, seja para produzi-lo seja para apreciá-lo. Diversas falácias são
derrubadas ao longo de todo o livro e inúmeras questões pejorativas são
desmistificadas através de outros personagens, tais como Tia Neusa, que passou
muitos anos estudando fora do Brasil, e Zazinho, que alimentou dúvidas
entre cursar Direito ou Artes Plásticas. A escolha lexical é outro ponto de
destaque na obra, sobretudo, no tocante aos nomes próprios (Abayomi, Ainan,
Aganju, Ayana). Relacionada a isso está a evidente pesquisa histórica e
geográfica apresentada em diversas passagens:
Ele
construiu uma série de escudos com uma riqueza impressionante de
particularidades, adquirida por um empresário da ilha de Kuanza, em Angola.
Neles, esculpiu as guerras de libertação dos países africanos no século XX.
[...]
O primo
insistia em que o vô conhecesse as embarcações do povo Songai, grandes
navegadores africanos.
As
simbologias também estão representadas nos rituais sagrados, nas cerimônias e nos
costumes. As crianças, em diversos momentos, sentam-se ao redor dos mais velhos
para ouvir histórias. A formação circular inclusive aparece no sentido de que
todos os personagens têm direito à palavra, fazendo com que o diálogo ganhe
movimento “... E o que aconteceu?”, perguntou o vô Francisco para ouvir uma
voz diferente da própria e acordar a si mesmo. A ideia de integração,
inclusão e circularidade é reforçada pelo projeto de construção de um museu
comunitário, marcando, portanto, o ajuntamento, o aquilombamento, além da
manutenção da memória, das origens, das obras produzidas ao longo da vida.
Os
detalhes são trabalhados de modo bastante sutil no decorrer da história através
da delicadeza dos pequenos gestos: Vô Francisco chegou amparado por Zazinho,
sentou-se, olhou nos olhos do Abayomi e das meninas, da vó Berna, também nos
meus e eu senti o arrepio da despedida. O caminhar, os sorrisos, as trocas
de olhares complementam as simbologias do livro e tocam em temáticas que mexem
com nossa sensibilidade, haja vista o fato de um dos pentes ter o desenho de um
passarinho e pertencer a Melissa, uma menina que não pode andar. Tal poética também
se faz presente com o realismo maravilhoso:
Atento
aos latidos o vô olhou para o alto e viu um menino trotando cavalinhos de pau
numa estrela vermelha. Loguinho o menino lançou uma teia da ponta da quinta
ponta da estrela vermelha para a ponta da terceira ponta da estrela amarela, no
paralelo de Greenwich.
Nesse
sentido, Cidinha da Silva transita em várias esferas ao criar uma obra
direcionada a todo e qualquer público-leitor. A ancestralidade, as simbologias
e a autoafirmação não têm idade para serem descobertas, aprendidas e deixadas
como herança para a posteridade. O livro apresenta, ainda, muitos outros
espaços e símbolos a serem explorados. Os aqui destacados são apenas uma
pequena amostra de alguns elementos que formam parte de um processo cujo
desenvolvimento acontecerá no tempo exato para cada ser humano.
Cidinha da Silva é mineira, prosadora, dramaturga e editora. Criadora de 15 obras autorais, incluindo: Pra começar: Melhores crônicas de Cidinha da Silva Vol. 2 (2019), Exuzilhar: Melhores crônicas de Cidinha da Silva Vol. 1 (2019), Um Exu em Nova York (contos, 2018), O homem azul do deserto (crônicas, 2018) e #Parem de nos matar! (crônicas, 2016). Tem textos publicados em espanhol, francês, catalão, italiano e inglês.
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.