Por crônicas de dias melhores, João Gomes

 

por João Gomes__

 

Foto: Sérgio Lima/ no portal Poder 360



Sinto saudades de quando era um cronista sem ressentimentos. A vida nunca é mais do mesmo. É sempre outra, diversa em sua essência ressignificada. Fui pesquisar o gênero crônica e adoeci cronicamente: abandonei a escrita diária. Mas isso foi muito antes, quando li que crônica é tirar leite da pedra. O meu ressentimento, num embate entre a infância e o Brasil atual, dificultou essa extração rochosa. Não consegui estar feliz com mais de 500 mil mortes apontando para o mesmo alvo. Impossível não se questionar: quem sou eu e o que fiz ou não fiz em contribuição a esse genocídio?

 

Seguir narrando dia após dia não é tarefa das mais fáceis, e é o que o jornalismo faz em combate ao Cala essa boca cuspido pelo chefe da nação aos profissionais da imprensa. Cronicamente preferi apenas ouvir, para não escrever parcialmente ressentido como agiu aquele ex-juiz e ex-ministro. Impossível se distanciar para procurar entender apenas no futuro, porque é sempre de hoje que estamos falando, de um hoje que não cai bem na crônica de nenhum cronista minimamente humano.

 

A tristeza tomou conta da maioria, e cada qual segue ainda lutando com sua armadura. O luto foi experimentado sem distinção de classe, a riqueza não conseguiu salvar a maior riqueza de todas, a saúde, que possibilita a vida. Cronicamente os dias passaram a ser uma média móvel de vidas perdidas. A ciência mostrou mais uma vez em quem acreditar quando o ataque negacionista se instala na saúde populacional. A arte não perdeu sua habilidade, porque é ela mesma o reflexo da humanidade. Adoecemos nós, com nossas diferentes formas de enfrentar o todo.

 

Alguns sabem que estão do lado certo da história, e isso tem uma relação muito forte de equilíbrio contínuo. O maior exemplo de progresso atual será trocar o presidente, frear o extermínio da população brasileira. Recordo com revolta a chegada do ódio ao poder. Já era tomado pela crítica social e política através de poemas que eu mesmo fazia sangrar na minha maneira de enxergar o que nos acontecia. Não podia permanecer dizendo que não foi por falta de aviso, que a hashtag #elenão só servia no período eleitoral, e o meu status de WhatsApp até hoje é: O Brasil precisa repensar o que decidiu.

 

Daquela atualização de status aos dias atuais, claro que o Brasil não decidiu só, foi preciso que fake news desenfreadas em milhares de caixas sem entrada permitissem que a faixa presidencial cobrisse o fascismo. Num atual retrocesso sempre maior, o medo escancarado de perder através do voto eletrônico com a volta do impresso. Como nos EUA, o infantil charminho sugestivo de uma Terceira Guerra de seu derrotado aliado, Trump sem segunda chance. Por isso a importância de ficar claro de que lado se está, como na canção de Natiruts: Cresça independente do que aconteça. E que a única coisa que possa ser impressa sejam as crônicas de dias melhores, porque estas sim vale escrever.





João Gomes
(Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.