Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos, de Leonardo Valente

 

por Adriane Garcia___

 


Livro interessantíssimo, Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos, de Leonardo Valente, é um romance escrito em primeira pessoa, cuja personagem “D.” nos leva ao seu mundo por meio de uma experimentação de escrita. Já nas primeiras páginas D. nos alerta para o fato de que possui a “síndrome da imunodeficiência afetiva”.

 

De D. não sabemos se é homem, se é mulher, se é cis, trans, se é hétero ou homossexual, não temos qualquer definição nesse sentido. Também não sabemos com o que trabalha, ou seja, não é uma pessoa definida pelo que faz dentro da cadeia produtiva. Sabemos que é uma pessoa, é o que importa, e essa é uma das características mais marcantes nesse romance, dar-nos a perceber que as situações vividas, as emoções narradas poderiam se passar com qualquer ser humano, sem precisar que seja definido um grupo sexual, um gênero ou uma profissão. E mais, como o texto nos convence, seja qual for a maior identificação de gênero que façamos da personagem, o autor acaba por mostrar, de modo eficiente, que a verossimilhança com relação a uma personagem não precisa depender necessariamente de qualquer afiliação, característica ou orientação da autoria. Nesse sentido, Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos é também um livro que se destaca nos debates sobre lugar de fala e criação. Ao jogar com os artigos e pronomes masculinos e femininos e com as desinências de gênero variadas para uma mesma pessoa, sem que isso atrapalhe a fluidez da narrativa, Leonardo Valente adiciona à história um jogo delicioso para quem lê. A universalidade do que é humano se sobrepõe. “perdão pela indelicadeza de até o momento não me apresentar. sou D. creio tratar-se de informação suficiente diante de tudo o que pretendo vomitar e que é infinitamente mais importante que minha identificação social ou o que exerço no trabalho.”

 

D. expõe seus problemas quanto nos relacionamentos com seus ex-maridos, o marido atual e seu futuro marido, assim como confessa a vigilância que exerce sobre eles nas redes sociais, na demonstração consciente de apego ao passado e ansiedade pelo futuro, entregando sua agonia por nunca estar no presente: “atropelo a vida com essas antecipações”. Um detalhe curioso é que todos os seus maridos possuem o mesmo nome, o que reforça a fixação da personagem por esse outro que a ocupa. Nas crises dos relacionamentos, D. costuma deixar a eles a responsabilidade pelo término, pelo fim das próprias histórias, revelando sua covardia. No fundo, ela/ele está sempre buscando a mesma pessoa em várias, como um narcisismo que busca a si mesmo; em outros momentos parece tratar-se de uma fragmentação de personalidade. D. só ama o que perde, desdenha do que tem, age como uma pessoa superficial, sendo alguém muito profundo.

 

Para dar conta de sua profundidade e da dificuldade que é viver e se relacionar, D. escreve. É a escrita seu método de criogenia. D. escreve para congelar o sofrimento, a ansiedade e o passado. Congelar para interromper a vida, mas um dia, quem sabe, poder reavivá-la. Assim, toda criogenia é uma morte pela metade, e é um exercício de esperança. Falando de si, a personagem de Leonardo Valente também constrói um texto metalinguístico em que discute a própria ficção. D. mistura suas confissões com o exercício de escrever, a ponto de, depois de nos convencer de algo, simplesmente dizer na página seguinte: “minto tanto que às vezes não sei diferenciar a realidade do que inventei. sou um mentiroso de coisas fúteis e de coisas relevantes”, ou de nos confessar o oposto do que há pouco nos dissera: “suprimi aqui uma parte inteira que tanto gostei – meia página – apenas por não acreditar que o que escrevi seja realmente eu. falsificar-me é vício que quero substituir por outros, pelo menos aqui”.

 

Quanto aos prazeres perdidos, D. confessa, por exemplo, fantasias sexuais para, em seguida, registrar a repressão, a vergonha e a culpa, dando satisfação à sociedade, que denuncia como falsa. Tudo isso é feito de modo muito bem-humorado – um humor cítrico – e utilizando a ambiguidade de cenas que podem bem ser metáforas, como nas suas confissões culinárias em que a cozinha se dá como lugar de falsificações. D. chega a nos dar uma receita de penne ao funghi verdadeira que ele nunca experimentou, depois de nos informar várias vezes de como já falsificou molhos utilizando creme de leite e sopinhas industrializadas. Cama e mesa se estabelecem como lugar de prazer, onde pode estar a verdade, mas também a mentira elaborada, verossímil. Comida e literatura.

 

Página a página, Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos surpreende com um uso muito consciente do texto como ocupação gráfica na página.  O texto é escrito com minúsculas, na maior parte do tempo, o que tem um uso justificado na narrativa. O capítulo todo escrito em maiúsculas deixa claro a intenção de gritar, de ser agressivo. As páginas irregularmente preenchidas, os espaços em branco, a mancha reduzida na página 82, por sinal uma página de cor invertida, preta com letras brancas, tudo é intencional: “esta, por exemplo, sou eu do avesso”. D.  tem ciência de que escreve e sabe que escrever é seu único espaço de plenitude.  Com a leitora/o leitor nas mãos, D. nos reafirma uma das lições da literatura, a de que não se deve confiar em narradores: “Não confiem em nada do que acabo de escrever”, e ainda completa, “pois minha essência é fraudulenta”. No entanto, confiamos em D. até a última página.

 

“cozinhar é o ato perfeito de transubstanciação, a ciência mais depurada em prol da vida. já fiz muitos pratos elogiados para os amigos, mas hoje não mais. afastei-me deles por causa de meus maridos. afastei-me deles por minha causa. converso com esses não mais tão amigos de vez em quando, curtimos uma ou outra coisa nas redes sociais, mas nunca mais comemos juntos. e se não comemos reunidos é porque nossos laços não são mais os mesmos. o afeto vive ao redor das mesas, tanto que é delas que queremos afastar rapidamente aqueles que não mais convêm ou que decepcionaram. as mesas revelam mais intimidades do que as camas. um estranho pode conhecer a textura dos lençóis e a densidade da mola de meu colchão com apenas minutos de convivência, mas jamais sentará em minha mesa sem antes tornar-se um alvo de meus afetos, um significante com vários significados em meus relacionamentos, e isso leva tempo. na noite insone por causa daquele conhecido que vi na TV, fiz macarrão após adormecer. fervi a água, escolhi um espaguete bem fino e de massa italiana e o depositei delicadamente na panela. não ponho um fio de azeite na água, como muitos vangloriam-se de fazer. azeite na água é pós-verdade de quem acha que entende de cozinha. tenho muitas restrições ao termo pós-verdade, mas considero a expressão perfeita para a necessidade do uso do azeite para o bom cozimento do macarrão. acompanhei todo o processo sem sair de perto da panela. senti por alguns minutos o vapor d’água chegar ao rosto, até que soberanamente decidi estar pronto, pois sou a senhora do ponto da minha massa.”

(excerto da pág. 17/18)

 

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Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos

Leonardo Valente

Romance

Ed. Mondrongo

2021





Leonardo Valente
nasceu em Niterói (RJ), em 1974. Publicou os livros O beijo da Pombagira (2019) e Apoteose (2018). No ano passado, lançou Calote e foi um dos organizadores da coletânea Antifascistas.

 






Adriane Garcia
, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.