por Rafael Silva__
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Intervenção na fotografia de Santi Vedri |
一
O que diria ao seu pai?
O menino parou para sentir uma angústia que há
tempos lhe apertava o peito e só agora encontrava brecha para dar-lhe a devida
atenção. Vasculhou dentro de si a resposta:
一
Que eu tenho saudade dele — disse com voz firme, dando de ombro, supostamente
indiferente, como se não precisasse falar sobre sentimentos. No entanto, ainda
era criança, não conseguia esconder que sentia demais.
Emprestei-lhe uma folha em branco e um lápis.
一 Se quiser, pode escrever
uma carta para ele. — Sabia que o garoto não era muito chegado à palavra dita,
palavra dita pode ser ouvida, ele poderia falar de fraquezas e ninguém deveria
saber das suas. Cedeu à ideia, portanto. Na folha, escreveu os acúmulos,
palavras amontoadas em seu peito que lhe engasgavam e atrapalhavam a
respiração.
De canto de olho, fui pescando alguns dizeres:
“Querido pai…”, começou assim, a mão
hesitante sem saber ao certo se deixava o coração dizer, com medo de escancarar
demais as portas. Nunca tinha se dado essas liberdades, não fora-lhe ensinado
sobre essas baboseiras de “mulherzinha”. O pai lhe ensinou mesmo foi a mexer em
motor de carro, a dirigir trator, a
pilotar uma moto, a pegar peso, a puxar massa, a falar grosso e outras coisas
úteis que fazem a vida acontecer. Era tudo o que esse pai havia aprendido e era
o que esse pai poderia lhe ensinar. Devia estar preparando o filho para a
dureza da vida. O pai nunca foi criança e bem entendia que não havia tempo para
isso quando, mesmo antes de nascer, se é considerado apenas uma das muitas
peças de uma engrenagem.
“... sinto
sua fauta. Agora estou com minha mãe. Não tem sido muito bom. Lembro do sinhor
todos os dias quando acordo, quando vejo a caminhonete, quando não escuto tua
gargalhada e quando não sinto mais aquele abandono de quando você me deixava em
casa pra ir pra sua nova esposa…”
Pausou, percebeu o que estava acontecendo: o
lápis lhe denunciando sua intimidade. Não se sabia assim. Assustou-se consigo
mesmo e com português de boca, prosseguiu: “
Saudades pai. Não sei mais o que dize, porque saudade é uma palavra tão grande
que cabe isso tudo que istou sentindo, tão grande que somente ela poderia ser
essa carta intera. Não me conformo Sinto raiva mas espero que o sinhor esteja
em um lugar melhor. Ontem minhas tias quiseram pegar as coisas do sinhor
queriam vender. Eu não deixei. Elas ficaram com raiva de mim como sempre me
chamaram de vagabundo. Eu até to acostumado já. Nenhuma me ama mesmo a única
pessoa que me amava era só o sinhor e me protegia, mas o sinhor não tá mais
aqui. Eu vou tentar ficar bem obrigado por tudo o que me ensinou.”
Escreveu isso tudo de uma tomada só, vez ou
outra, esfregando a borracha em inícios de palavras que despontavam, mas que
não deveriam estar ali. Não foram feitas para aquela carta.
一
É isso. — disse com os olhos ainda no papel.
一
Terminou?
一
Acho que sim.
一
Mesmo?
一
Não, espera.
“Ti amo”.
一
Agora, sim.
一
O que fará com a carta, agora?
Refletiu por longos segundos e por fim:
一
Já sei.
O menino iniciou uma dobradura. O papel
retangular foi tornando-se menor. De início, pensei que fosse apenas dobrá-lo
em 4, mas depois de 6 ou 7 movimentos, aquelas mãos brutalizadas foram
desfazendo as retilíneas e os contornos quadrados do papel renderam-se à forma
do amor feito coração. Nem mesmo eu, confidente seu, havia suspeitado de sua
sensibilidade secreta. Apesar de tudo, restara sentimentalidades no menino. E
se assim o digo, é porque eu também, por vezes, me esquecia de ele era apenas
uma criança.
Outra vez, me contara que havia presenciado um
assassinato.
一
Oxee… já vi foi meu ti sendo baleado nos peito. — Falava sem terror ou qualquer
tipo de constrangimento. E na mesma lida, lembrou-se de outro causo:
一
Ó, só pra tu ter uma ideia, já jogaram foi a cabeça de um cara na porta da
minha casa…. ê ê lá embaixo as coisas num é fácil não.
Por “lá embaixo” o menino queria dizer na
favela, onde o que comanda é a facção e o Estado só ocupa com polícia. Em cada
narrativa como essa procurava Marcelo. Eu não aceitava que aquele menino
pudesse ser feito apenas dessas memórias violentadas. 13 anos! Exclamava comigo
mesmo, assustado, indignado querendo questionar aos gritos os livros que li nos
quais diziam que a fase adulta só chega depois dos 19. Mas por que, para
Marcelo, chegou tão mais cedo? Que direito foi-lhe negado para lhe ser imposto
o dever de ser adulto já agora aos 13?
Neste mesmo dia, perguntei-lhe sobre sonhos, o
que ele queria para o futuro. Demorou pra responder, suspeitei que nunca havia
refletido sobre isso. Por fim, me deu a resposta mais acessível:
一
Quero dirigir caminhão, uma carretazona, que nem meu pai. — Sorria quando
lembrava dele. Aquele pai que poderia ser tido como irresponsável, era para
aquele menino o maior dos heróis. Era o pai que ele tinha. Era o pai que tinha.
Afinal, qual outra criança aprende a dirigir carro? Qual outro pai deixa seu
filhote comandar um trator? Não é sonho de toda criança tornar-se adulto? Ele
teve essa oportunidade, para a inveja inocente de muitas crianças, mas teve a
chance de descobrir o que é ser criança?
Marcelo também era expulso das escolas com
frequência. 8 até então. Ninguém conseguia compreender a violência nesse menino
e escola alguma poderia manter em seu corpo discente um garoto que espanca um
coleguinha de turma até quebrar-lhe o nariz, mesmo Marcelo gritando 一 Ele que começou!
Gordo, tição, viadinho, baleia, carvão,
mulherzinha, cabelo pixaim, cabelo bombril, vagabundo, marginal, baitola,
endemoniado… nada(!) era justificativa para que Marcelo reagisse com violência
e os professores, coordenadores e diretores seguiam indiferentes ao “Ele que
começou!”. Não importava, porque violência mesmo é só quando o outro aparece
cheio de hematomas, violência mesmo só é declarada, muitas vezes, post mortem. Por fora, Marcelo estava
imaculado. A pele continuava preta e lisa: sem um roxo, sem vestígios de
arranhão. Dentes no lugar, nariz intocado, rosto de monstro raivento,
inculcando todos os adjetivos a ele atribuídos. A perfeita cria do delinquente.
Um bode expiatório. E para que serve um bode expiatório senão para purificar
uma mácula que nunca foi sua? Mas só nós sabíamos que dentro tinha um coração
em frangalhos, um peito amarrotado e um choro estancado.
O menino chorou, então.
一
Você já tinha chorado pela morte do seu pai?
一
Não. — Isso também não foi-lhe ensinado: quando alguém que a gente ama se vai,
a gente tem o direito de chorar, Marcelo! As mãozinhas limpavam as lágrimas que
corriam envergonhadas e aliviadas.
一
Alguém já te abraçou?
一
Não.— Como ninguém enxergava que detrás daquele corpo havia uma criança pedindo
colo?
一
E eu posso te dar um abraço?
一
Um abraço?
一
É. Só se quiser.
一
Uhum— consentiu, sem poder dizer mais.
Levantamo-nos para esse momento solene,
olhamo-nos e nos abraçamos. Ele era maior que eu e tão mais frágil. Aninhou-se
em mim, eu o resguardei. Nos primeiros segundos Marcelo não sabia o que era
estar em um abraço. Estranhava aqueles corpos colados e calados. Depois, foi
entendendo. Deixou-se estar. Respirou, relaxou os músculos, senti o resto do
seu peso e sustentei. E aos poucos a dúvida, o medo, a raiva e a vergonha foram
cedendo lugar à criança ferida, carente que pedia por amor.
Sentimos a força disso tudo e nos permitimos
mais alguns instantes até que o garoto se desvencilhou, agradeceu-me, virou as
costas e colocando o coração no bolso retornou para o mundo no qual interpretava o vagabundo, o
delinquente e o adulto. Não tornei a vê-lo.
Sua mãe levou-o embora e eu segui a vida em direção oposta. Sem notícias, não
há um só dia que passe sem que eu me pergunte: Marcelo, por onde andas?
Rafael Silva. Jovem escritor sem gênero literário fixo. Escreve o que der na telha. Se quebrar o teto e rachar as paredes: é texto na certa. Metido a cantor. E essas coisas que faço por pura necessidade e amor me definem bem mais que as oficialidades de ser psicólogo, pós-graduando e outras convencionalidades dessas aí. Do Bom Jardim, Fortaleza/Ce, estou lançando ao mundo meu primeiro livro "Escritos sobre um velho em ruínas" com Selo Mirada.