Bolo de laranja, crônica de Germana Accioly

 

 por Germana Accioly__

 




"Alguma coisa ali adomingava a alma"

A frase de Valter Hugo Mae, no livro "A desumanização", me trouxe de volta.

Sim, de volta.

Passei dias sentindo uma necessidade de recolhimento que nunca senti antes na vida.

É como se eu precisasse não ser.

Não estar.

Não chorar.

Não rir.

Um tanto faz de coisas e sentimentos...

Uma sensação de entalo.

Uma viagem para dentro com longas paradas.

Um medo de não saber voltar.

Foi lendo "A desumanização", tão denso quanto a vida, que voltei a olhar pra fora de mim.

Hoje minha alma me acordou antes do amanhecer.

Me chamou para respirar.

Me convidou para voltar a ver poesia na desordem da pia da cozinha.

Tirei da geladeira manteiga e ovos. 

Enquanto degelavam, eu lia na temperatura ambiente.

Bati a mão o bolo de laranja sentindo seus aromas.

Sentei ao lado do forno, livro na mão, e aguardei pacientemente o ponto.

O livro falava de vida e morte.

O bolo foi crescendo e dourando.

Lindo.

Vocês precisavam ver.

O processo de cozimento igual à vida.

Deixei esfriar.

Tirei do forno antes do timer avisar, mas estava pronto.

Fiz uma calda de laranja com seus gominhos e vesti o bolo, como quem envolve o corpo numa echarpe de algodão.

Tudo é alquimia.

Aos poucos fui chegando aqui.

Viagem longa. Quando me sentei pra tomar um café o sol já entrava forte pela janela da sala.

Os meus pés no chão de taco, fincados no hoje.

Cheguei.




Germana Accioly
é escritora e jornalista. Escreve no blog Perder de Vista