por Katia Marchese__
A última noite em solo uruguaio seria dentro de um ônibus. Sob chuva e alertas de tornados, parti de Montevideo assustada. Sabendo que não iria dormir, carreguei alguns livros que adquiri na Librería Más Puro Verso, para enfrentar 11 horas de viagem até Porto Alegre. Naquela noite, conheci a poeta Julia Galemire, escolhida as cegas nas estantes de poesia uruguaia. Pelas frestas da janela, fortes ventos do sul regiam a leitura dos poemas e como todo medo precisa de salvação, escolhi iniciar o livro Fabulares (uma coletânea de várias obras da autora) pela seção La mujer y el ángel. O percurso dos ventos teve seu fim, mas a poesia de Julia estava apenas começando dentro de mim.
O que
trago neste texto é um aprendizado entusiasmado pela poesia de Julia Galemire,
para conhecê-la melhor exercitei a tradução de seus poemas com meu espanhol
limitado, pesquisei sobre sua vida e sua obra. A descobri atuante aos 98 anos de vida, na produção
de poesia, na gestão do Grupo Cultural La Tertulia (criado por ela em 1994 por
onde circulam escritores nacionais e internacionais ainda em atividade) e interagindo
nas redes sociais. Encontrei algumas identificações com Julia Galimere, um jogo
de espelhos que por vezes me impressionou.
Julia é
uma poeta que começa sua trajetória pública na poesia tardiamente, seu primeiro
livro, Fabula de la piedra é publicado em 1989 aos 66 anos, seus estudos
literários tiveram início depois da carreira como enfermeira (é o que se pode
deduzir do material escasso de sua biografia). Mas nada disso a impediu de
alcançar seu lugar junto aos seus pares no cenário da literatura uruguaia.
Inevitável não olhar para esses reflexos de Julia na minha própria história com
a poesia, também sou tardia na produção e nos estudos.
Hoje
quero me deter no engenhoso confabular histórias através da poesia de Julia
Galimere, rapidamente você aprecia a dança do seu intelecto e as imagens que
ela vai desvelando. Passeia por ideias simbolistas e surrealistas, uma poesia
de formulações metafísicas e abstrações cristalinas, mesmo que vc. não alcance
todo o significado pode sentir seus efeitos, pode entender os gestos da sua
letra.
Os
eixos estruturantes da obra La mujer y el ángel
A arte
de fabular nos poemas de La mujer y el ángel apresenta uma construção
formal e estética bem interessantes, são versos concisos, repletos de enjambement
e de extensões muito controladas. Uma poética carregada de sentidos e
percepções, ela pode ser enigmática, mas nunca hermética em suas abstrações, há
sempre um fio condutor entre o onírico e a realidade. Não afirmando nada sugere
o mistério, se debruça nos seus limites e indaga.
Os
poemas estão dispostos lado a lado, em par se apresentam ao leitor, na página
esquerda o Anjo e a direita a Mulher. Destaco as sinestesias que aproximam e
diferem sentidos entre uma mulher e um anjo. A sonoridade dos seus versos é
discreta como uma música de fundo embalando as visões. Confabula nos poemas a
natureza das criações terrenas e míticas, a partir do onírico, das névoas, dos
materiais da natureza, dos signos celestes, dos elementos míticos (sagrado e
profano). Aqui uma pequena amostra (dois pares de poemas em diálogo) do que
proclamam estes dois arautos, o Anjo e a Mulher, sobre suas existências:
I
A mulher pensa nos
arrependimentos,
em ver como se forjam os
diálogos,
nos ódios que nascem entre
papéis
e ideias corrosivas,
minúsculos inimigos que vêm e
vão,
nas heras solitárias
que se arrastam por muros de
medo,
em mistérios e lendas
que fingem ser histórias.
A paz por vezes
é uma longa espera
onde a liberdade apenas se
insinua,
é um emissário
que aguarda a sua memória
e a sua marcha em direção à
luz.
O anjo
retorna a sua verdade
bíblica,
sobrevive
aos silêncios
num voo
de pedra e acaso.
Pensa
em sua natureza
-
separação do corpo ritual –
como
essência do divino
e do
profano,
sacrifício
do que morre
nesta
comunhão.
Os
golpes da razão
o cerca
de imagens simples,
o
íntimo de uma eternidade
que não
pensava nem conhecia.
I
La Mujer piensa en los
arrepentimientos,
en ver como se fraguan los
diálogos,
en los odios que nacen entre
papeles
y corrosivas ideas,
minúsculos enemigos que van y
vienen,
en las hiedras solitarias
que se deslizan por muros de
miedo,
en misterios y leyendas
que fingen ser historias.
La paz que de a ratos
es una larga espera
donde la libertad apenas se
insinúa
es un emisario
que aguarda su memoria
y su marcha hacia la luz.
El ángel retorna a su verdade
bíblica,
sobrevive a los silencios
en um vuelo de piedra y
casualidade.
Piensa em su natursleza
- separación del cuerpo ritual
–
como esencia de lo divino
y lo profano,
sacrifício de lo que muere
em esa comuníon.
Los golpes de la razón
le acercan imágenes simples,
lo íntimo de una eternidad
que no pensaba ni conocía.
II
em sua
incrível aventura.
Ouça os
cânticos,
as
tantas vozes que se elevam
sobre
os vãos pudores,
sobre a
incompreensão
que se
repete em cada sombra
ou em
cada vereda
no país
onde todo verde perecerá.
Ali
onde toda vestimenta prenuncia
a nudez
das frias estações,
ou as
portas que encerram
a
esperança.
O anjo é o último reduto do
crepúsculo
ou talvez a espiral cinzenta
de um templo abandonado.
Seu rosto não tem contornos.
Sua pele,
sua pele expande-se num milénio
de outras faces
que lhe trazem piedade,
a sua jovem palidez.
O anjo é o encantador
das trevas
que carrega consigo
A parte mais sutil
do pranto.
II
La angustia rodea a la mujer
Em su increíble aventura.
Oye los cânticos,
Las plurales vocês que se
elevan
Sobre la incomprensión
Que se repite em cada sombra
o em cada vereda
en el país donde todo verdor
perecerá.
Allí, donde toda vestimenta
preanuncia
La desnudez de las frías
estaciones,
o las puertas que se cerrarán
a la esperanza.
El Ángel es el último reducto
del crepúsculo
o quizás la gris ojiva
de un templo abandonado.
Su rostro no tiene contornos. Su piel,
su
piel se expanden en un milenio
de otros rostros
que le acercan su piedad,
su joven palidez.
El Ángel es el encantador
de tinieblas
que trae en su báculo
la parte más sutil
del llanto.
O que indagam as vozes de La
mujer y el ángel ?
De que matéria
é feita a Mulher e o Anjo? O que os iguala e os diferencia? Do que padecem e o
que os redime? O sagrado e profano, o finito e o infinito em tensão constante
nas disputas de autonomia por seus próprios corpos e vozes, e, no entanto,
sempre submetidos a um ser superior que os condena aos seus ciclos de vida,
morte e eternidade. Encontrei algumas repostas durante a leitura desse livro,
espero que vocês encontrem também outras indagações e respostas nesta arte da
fábula com as palavras que Julia Galimere realiza em sua poesia.
Infelizmente os livros de Julia Galemire são difíceis de encontrar, há alguns poucos na Estante Virtual, eu os adquiri em Montevideo. Sonho em poder ver a poeta Julia traduzida aqui no Brasil. Quem sabe um dia dou conta de herculana tarefa.
*Você também pode acessar a resenha aqui: Laudelinas
Obras
Impressionismo e algo mais, minha visão ( Yaugurú . 2017)
Fabulares ( edições do sótão . 2009)
Diário Poético ( La Gotera . 2005)
A mulher e o anjo: crônica de um poema (La Gotera. 2001)
Fábula da névoa (Bianchi Editores. 1997)
Sul do ar (Graffiti. 1994)
A escrita ou o sonho (Signs. 1991)
Fabular da pedra (Projeção. 1989)
Rede Social da autora: https://www.facebook.com/julia.galemire