por Adriane Garcia___
Sob olhares
religiosos ou científicos, suspeitos ou não, a história da humanidade registra
alguns casos de corpos que não se decompuseram. Por vezes, esse fenômeno foi
considerado místico, dando origem à crença dos santos incorruptos. Durante
muito tempo, a Igreja Católica defendeu a tese de que somente os puros de
coração, os santos e as santas, os de fé inabalável podiam não sofrer a
degradação da matéria que atinge os pobres mortais pecadores, a mais comezinha
das situações; motivo pelo qual, inclusive, muitos candidatos ao reconhecimento
de sua santidade foram exumados, a fim de saber se o corpo se conservou incorrupto,
ou parte dele, apresentando-se como sinal inequívoco para a beatificação e
canonização. Nem sempre se consegue explicar o motivo pelo qual esses corpos se
apresentam mumificados, petrificados, mantendo seus traços e forma. Há casos de
santos católicos cuja incorruptibilidade foi considerada milagre, mas estudos
revelaram o processo artificial de mumificação pelos devotos. Porém, existe mesmo
o fenômeno da mumificação natural. O paleopatologista Gino Fornaciari,
da Universidade de Pisa, esclarece que “a mumificação natural acontece em
lugares muito secos, onde o corpo desidrata rapidamente e a falta de água
impede a ação das enzimas e das bactérias responsáveis pela putrefação”.
O
romance Nem sinal de asas, de Marcela Dantés apresenta-nos um
corpo incorrupto, o de Anja Santiago, encontrado cinco anos após sua morte,
dentro do apartamento. É a partir do leilão do imóvel, de herança vacante, que já
desconfiamos que essa mulher tão anônima não tem ninguém e, assim, ninguém deu por
sua falta. Ela foi encontrada por motivos econômicos: seu dinheiro no banco
cessou e o débito automático das contas não se fez mais possível. Somente
quando os credores deram falta do dinheiro de Anja, ela foi procurada.
Anja,
como todas as vítimas de nomes que só agradam seus pais, mas que servem de
motivo de bullying certeiro e adivinhado na escola, odeia o próprio nome e, por
isso, só se apresenta como Ângela. Não obstante, o nome escolhido faz-se
perfeito no romance de Dantés, evocando um território religioso,
celestial, a santidade de Anja: uma santidade sem fé, uma santidade que escolhe
cuidar do outro sem se envolver, para melhor lhe preservar a vida. Uma
santidade baseada na impotência, a de fazer o menor mal possível.
O
martírio de Anja começa logo no seu nascimento, quando Dulce, a mãe, branca e racista
– casada com Francisco, um homem negro – quer uma filha branca e se vê
frustrada em seu desejo, partindo para uma terrível “solução”. É interessante
que, aqui, Marcela Dantés poderia ter enveredado pelo ódio dos racistas
e “chapado” essa personagem, o que não acontece. Dulce é mulher de carne e
osso, erro e acerto, solidão e luta, medo, amor e culpa, exercendo não uma
maternidade idealizada, mas uma maternidade real, dessas que tem dificuldade de
amamentar, e não a dos encartes publicitários. Perdendo o pai aos quatro anos,
Anja perde também aquele que era o equilíbrio da família e terá que aprender a
viver a solidão, na máxima ensinada por sua mãe, a de que tudo a que a gente se
apega, morre.
Alfabetizada
pela mãe, com uma inteligência além da média, Anja se destaca na escola e se
torna, a despeito das profissões “importantes” escolhidas por Dulce,
enfermeira. Dois traumas principais darão direção aos caminhos dessa
personagem: a morte do pai e sua relação de perda com os objetos de amor, e a
dor de queimadura causada em sua pele quando ainda era bebê. Todas as suas
escolhas serão de modo a evitar a repetição desses dois sofrimentos, nem sempre
com sucesso.
Nem
sinal de asas é narrado por duas vozes, uma anônima, em
terceira pessoa, e outra em primeira, a voz do porteiro Ramiro, homem limitado,
machista, capaz de abusos e muita sinceridade. Na narração em terceira pessoa, Marcela
Dantés utiliza de forma recorrente os parênteses. Neles, a voz narradora,
diz e desdiz, afirma e duvida, sublinha, acrescenta, desmente, sussurra, humoriza,
aproximando-se de quem está lendo:
“Enquanto
vivo, Francisco não soube.”
(Depois
de morto, também não.)” p. 51
“No
escuro e sem conhecimento e sem ferramentas e sem diploma técnico de elevador
(existe diploma de técnico de elevador?)...” p. 109
“Eulálio
fingiu (ou acreditou) que estava tudo bem por uma semana...” p. 119
O
principal cenário do romance é o Edifício Hotel Lucas, prédio decadente, de
passado glorioso, em cujo apartamento Anja será encontrada. A descrição e
ambientação de parte da história nesse lugar é feita com tamanha eficiência que
tem a força de fixar o edifício imageticamente quase que como um personagem,
silencioso, presente, crucial. Cenário de vida e de morte, nele Anja não
resistirá ao amor de proximidade, de envolvimento e esconderá um gato, o
Rinoceronte.
Com uma
protagonista forte e inesquecível, Nem sinal de asas mostra, de forma
emocionante, a história de uma mulher cujo milagre foi viver até onde lhe foi
possível, presa nos traumas de infância, exercendo a coerência das suas
virtudes na convivência com seus defeitos, no recolhimento que respeitava suas
limitações. Mesmo não sendo evidente, é possível que houvesse uma insistência
de Anja pela vida, na medida em que, ao optar pelo suicídio lento – o cigarro –
ela ainda podia esperar (desejar) algo, nem que fosse a dor. Infelizmente, a
lição de Dulce, a de que tudo que amamos morre, se inseriu tragicamente quando em
nada mentiu. Tudo que amamos morre, não porque amamos, mas porque tudo morre. Assim,
o erro de Dulce não foi detectar o fato real, mas interpretar nele o amor como
causa. O que Dulce não considerou é que o amor pode adiar a morte. Anja não
queria morrer antes da mãe, queria cuidar da mãe. Anja não queria morrer antes
do seu gato Rinoceronte porque o amava. Anja adiava a própria morte por amor.
No
apartamento praticamente vazio, cujo corpo mumificado dava um ar tenebroso, os
mais atentos puderam ver que as plantas ainda estavam vivas.
“Anja
pensava que talvez Dulce se orgulhasse de seu corpo cada dia mais magro, as
pontas dos ossos querendo rasgar a pele pra respirar melhor. Anja era
enfermeira, mas sempre achou que os cabelos cancerosos só caíam por causa do
tratamento invasivo e violento, mas não. A cada banho ela entupia o ralo com os
crespos que a mãe odiava e custava a se abaixar pra recolhê-los, porque a
cabeça parecia muito mais pesada do que o corpo podia suportar. Uma cabeça
humana pesa aproximadamente seis quilos e traz trinta e dois dentes, mas a de
Anja devia estar pesando muito mais do que aquilo, ainda que trouxesse apenas
vinte e sete dentes brancos (amarelos) e cobertos por uma camada quase
invisível de saliva ressecada.
No dia
trinta e um de dezembro de dois mil e onze, sete meses e oito dias depois da
sua primeira consulta, Anja estava deitada no sofá, a febre aumentando e os
remédios ignorando que aquilo lhe doía muito, demais. Não estourou um champanhe
quando virou dois mil e doze, mas acendeu um cigarro.” (p. 162/163)
***
Nem
sinal de asas
Marcela
Dantés
Romance
Ed.
Patuá
2020
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.