por Valdocir Trevisan__
Não gosto das divisões de ciclos na literatura filosófica, porém com Albert Camus é impossível de dissociar tais ciclos. Na década de 1930, o também escritor, jornalista e dramaturgo revelava os ciclos do
Absurdo, da Revolta e do Amor. No primeiro, expôs o contrassenso do nosso
cotidiano: as dúvidas do indivíduo, suas angústias e o suicídio, temas abordados
nas obras "O Estrangeiro" e o "O Mito de Sísifo". A Europa chorava o caos da II Guerra Mundial, o combate entre as nações e povos de outros continentes. Camus se sentia um
estrangeiro na França: nasceu argelino, e vivia o drama de ser um europeu "não europeu". Apesar de ser considerado existencialista, se apresentava
como representante do absurdismo.
O segundo ciclo, o da Revolta traz as publicações: “A Peste”,
"A Queda” e “O Homem Revoltado”. O filósofo e escritor pretendia encerrar
com o ciclo do Amor, mas não conseguiu. Morreu em 1960, vítima de um acidente
de automobilístico. Na primeira fase, no mundo de Sísifo (1942), Camus
escancarou o horror da guerra. Na obra "O
Estrangeiro", o principal personagem, Mersault, revelava uma vida sem
objetivos, indiferente a tudo e a todos como canta Zeca Pagodinho: "deixa
a vida me levar". Porém, o sambista se refere a uma (in)sustentável
leveza do ser.
O personagem Mersault transita na total indiferença.
Nem mesmo muda seu comportamento diante da morte da mãe. Para ele tanto faz ter
amigos ou não. Recusa uma promoção para morar em Paris por puro comodismo e
quando sua namorada o pede em casamento, responde evasivo: "tanto faz, mas
a gente pode casar, se você quiser". Ah, e completa ainda dizendo que não
a ama . Que simpático o rapaz, né? Assim, Camus vai dissecando as condições
humanas com suas ilusões, desilusões e sentidos da vida.
Para não caímos na tentação é necessário um equilíbrio entre as evidências e o lirismo, um meio
termo, como do Lá Palice, o senhor de Jacques de Chatannes (1470/1525) e do
louco Dom Quixote. Nem tão maluco, nem tão certinho fazendo sempre o óbvio: “nem
sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas vivendo e aprendendo a jogar”. Como
Camus sugere: "o verme se encontra no coração do homem, lá é que se deve
procurá-lo. Esse jogo mortal que vai da lucidez diante da existência à evasão
para fora da luz, deve ser acompanhado e compreendido". Tipo assim,
controlando minha maluquez.
Sentir-se estrangeiro desanima qualquer alma, pois se trata de uma separação do homem não apenas em relação ao seu país, mas às identidades e
seus absurdos, não sobrando pedra sobre pedra como na existência de Sísifo.
Para lembrar: Sísifo era Rei de Corinto e enganou a morte duas vezes. Na
primeira, quando a morte apareceu, ele com sua astúcia conseguiu amarrara-la em
seu castelo. Quando a Morte conseguiu se libertar, levou Sísifo para o seu
reino. Lá novamente ele enganou o inferno e fugiu se escondendo durante anos.
Quando morreu de velhice, não teve jeito, e no mundo obscuro recebeu um castigo
para a eternidade: tinha que carregar uma enorme pedra até o cume de uma
montanha. Chegando ao final da jornada, a pedra rolava abaixo para ele
recomeçar a carregar o pedregulho novamente, e novamente...e novamente. Como um
trabalho inútil.
A metáfora de Camus é essa: trabalhamos e vivemos carregando
nossas pedras. Na verdade, o conto faz parte da mitologia grega, mas Camus
acrescenta a nossa época os dilemas existenciais.
Ora, carregar pedras não é o nosso cotidiano? O mito de
Sísifo espreme a humanidade e suas pedras...
Quanta energia desperdiçamos inutilmente sem esperança, não
é mesmo? Mas Camus vislumbra o povir e quer um final feliz para Sísifo. Ele diz
que "assim como em certos dias, a descida de Sísifo é feita de dor, também
pode ser feita na alegria. Esta palavra não é exagerada".
Como assim? Verdade que encontramos pedras e fardos pesados
em nossos cotidianos, porém Camus nos lembra que somente a luta para alcançar o
alto da montanha já preenche lacunas existenciais. Diríamos que na pior ou na
melhor das hipóteses é algo para buscar e alimentar a existência.
Entretanto, não vamos esmorecer, e as piores pedras podem, e
devem ser carregadas com força e satisfação. Com pedras sobre pedras vamos ultrapassando
obstáculos. Acho que é por aí que percebemos que Camus não é pessimista como
muitos afirmam, mesmo trazendo o trágico do absurdo em seu cotidiano. Ele
releva nossos anseios com um divórcio do homem com sua vida onde o "ator e
seu cenário é propriamente o sentimento do Absurdo", acrescenta nosso
filósofo.
Não temos opção, o cotidiano existe e nos resta encarar o
que vier com sensatez e não com a indiferença de Mersault. Num colóquio com
essa temática, uma psicóloga disse que Mersault era o exemplo típico de
narcisista sem preocupações humanas ou materiais. Pode ser, mas na minha
modesta opinião, não seria o caso. Uma outra psicóloga afirmou que Mersault era
ingênuo mesmo. E assim vemos a complexidade da natureza humana. Neste caso também
tenho minhas restrições, porque acho que um ingênuo mostraria suas emoções no enterro da mãe.
Enfim, vamos percebendo lados positivos e negativos nas
teorias filosóficas de Camus. Situo Marseault em um mundo sem malícia, até com
certa ingenuidade, mas nem tanto! E se estamos condenados à morte desde o dia
que nascemos, com pedras ou sem pedras, ou pedrinhas que sejam, o melhor é
descobrir meios de transporte para esses
pedregulhos.
Sendo estrangeiro ou não.
Valdocir Trevisan é gaúcho, gremista e jornalista. Escreve no blog Violências Culturais. Para acessar: clica aqui