Ser imortal | Adriano B. Espindola Santos

 

por Adriano B. Espindola Santos__


Intervenção na foto de: Camilo Jimenez


As pessoas – certas e distintas pessoas – querem que eu abandone a escrita. Dizem que eu vomito palavras a toda hora: “Quando não está cagando, está escrevendo”; “Quando não está dormindo, está escrevendo”, e por aí vai. Falam até que tenho a maldição de conflitar a respiração com a escrita. Mandei, certa feita, um de meus “contos prontos” (esse é o nome da pasta no computador) para uma revista literária famosíssima. A primeira recusa não veio com justificativa. Insisti. Na quarta ou quinta vez – logicamente, enviando contos diferentes –, o editor chefe teve a bondade de me responder e pedir encarecidamente que eu “baixasse o fogo”, que meus escritos estavam “a ponto de incendiar a sua caixa de e-mails”. Lógico, não levei a resposta ao pé da letra; as pessoas transbordam e se excedem, às vezes, por puro desgosto da vida – ou por vaidade efêmera. A bem da verdade, tenho um certo apreço por esses serezinhos que ficam atrás do computador, manuseando as teclas com exatidão, para preparar maravilhosas edições. Jamais me queixaria ou me atreveria a uma resposta mal-educada a pessoas, como esse senhor editor, que prestam honrosos serviços à sociedade. O que faço, por firmeza de consciência e de princípio – e não teimosia –, é apenas o meu dever de conferir um leve brilhantismo às páginas bonitas das referidas obras. Sou, como digo à minha mamãe, minha fã incondicional, um servo da deusa dentre todas as deusas, abaixo de nosso Senhor, a literatura. Meu tio Honório, uma espécie de pai improvisado, que me cativou por sua bondade, vem sempre tomar um cafezinho com bolo no final das tardes de segunda e quinta. Não perco a oportunidade de lhe mostrar algumas de minhas preciosidades. Ele pergunta, educadamente, se não tenho arrumado trabalho nos últimos tempos. Eu o acalmo dizendo que este é o meu trabalho oficial; os outros, quando aparecem, são bicos, até que descubram a galinha dos ovos de ouro, a minha amada verve literária. Na segunda passada ele demorou um pouco mais do que o normal. Notei que minha mãe estava aflita e não consegui discernir o motivo. Logo meu tio me chamou no canto e pediu para ter uma conversa em particular. Ele fez o que um tio querido pode fazer, para ajudar o sobrinho: argumentou, com boas palavras, que minha mãezinha já estava cansada, que não poderia mais trabalhar preparando bolos e salgados para vender; que eu podia continuar com o meu sonho, mas que arranjasse em paralelo um bom emprego; que já era hora de sustentá-la. Pareceu-me que o meu tio estava cansado, desanimado. Eu pedi que, para relaxar um pouco, lesse um conto que havia preparado, “quentinho”, que trata da relação e do amor familiar. Ele expôs, cabisbaixo, que não teria tempo. Saiu agoniado e pediu que eu me dedicasse a refletir sobre a nossa conversa: “Pense com carinho, rapaz”. Posso assegurar que, possivelmente, esse foi o pior dia da minha vida. Não conto a partida de meu pai, muito precoce, porque eu era um bebê e não tinha sentimentos, nem sabia elaborar a morte. Meu tio, como relatei, faz as vezes de meu pai; me orienta e me educa até hoje, mesmo eu sendo crescidinho, como ele diz, com trinta e seis anos. Para não lhe desagradar, tenho feito alguma coisa para sortir as minhas atividades. Pela manhã, lavo a varanda e o alpendre – quando é preciso. À tarde, tento realizar, com presteza, as entregas da minha amorosa mãe. E à noite, porque ninguém é de ferro, vou ao leito para me deitar e sonhar. Nesses dias, andei lendo um livro sobre a escrita, de Stephen King – o legítimo rei, como você pode perceber pelo nome. Aí, o escritor fala de seus percalços, com doses generosas de humor e de esperança. Sinto que, a cada página lida, renovo o meu magnífico dom; um dom dado por Deus, do qual não posso simplesmente me afastar. Ainda vou comprar uma casa de vergonha para mãezinha, e um carro funcional para o meu tio – tenho pena quando ele acelera aquela geringonça propulsora de fumaça e espalha detritos por toda a cidade. Logo, logo ganharei o meu posto de honra, por merecimento. Todos vão me olhar como um grande escritor brasileiro, sei lá, comparado a Machado de Assis, de quem sou profundo admirador. Por ora, fica a enorme inquietação, o pecado da persistência e da suada disposição por ser imortal. Alguma luz há de brilhar. Algum céu há de resplandecer. Alguma estrada há de se abrir nesse horizonte sem fim. Pelo menos mantenho firmes os ensinamentos de meu avô Luís Antenor, o Nonô: “Menino, você é abestado ou o quê? Vá procurar o que fazer e me largue de mão! Pegue um papel e uma caneta e escreva, sem parar, até amanhã”.  Desde aí, não parei mais. Meu estimado avô tinha razão.

 


Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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