Todas as mães são tiranossauras, Marcela Maria Azevedo

 

por Rebeca Gadelha e Taciana Oliveira__




No seu livro de estreia, Marcela Maria Azevedo reflete as fissuras emocionais provocadas pela ausência materna, uma jornada entre o luto e a memória, um resgate a ancestralidade perdida. Assim como o filósofo e escritor francês, Roland Barthes, que ao perder sua mãe enfrenta a dor e a solidão através da escrita dos livros A câmara Clara e Diário de um luto, em Todas as mães são tiranossauras (Urutau, 2021), nos deparamos com uma saudade fossilizadae os desdobramentos de uma narrativa poética dividida em quatro partes: Sou eu quem carrega essa cicatriz, A geografia é um tato, Elementos de vida selvagem, Quem não vê não sente a ferida.

Apegando-se a reminiscências para ressignificar sua arqueologia afetiva, onde ainda se vive uma carência dolorosa, os versos de Marcela choram:

 

quando tu me ensinaste

todas as palavras que eu uso pra sofrer

dor machucado arranhão sangue

frio áspero braço quebrado

medo muito medo tristeza

               saudade

esqueceste de me ensinar

como chamar pelo teu nome

quando tu não estás

 

por uma etimologia da ausência

 

Se para o cineasta Andrei Tarkovski em sua obra, Esculpir o tempo, “Num certo sentido, o passado é muito mais real, ou de qualquer forma mais estável, mais resiliente do que o presente.”, para a autora o passado é uma porta ainda aberta onde, a partir do vazio deixado pela morte precoce da mãe, procura redescobrir a sua própria existência, como no poema um recado para allan kardec:

 

ou jeito de insistir no amor

onde ele já não existe

como se fosse um ritual

pormenorizado de crenças

em que se fia fia fia

e depois desfia tudo ao perceber

que é só mais um jeito simples

metódico e mágico de crer

poder ressuscitar os mortos

 

“Em todas as mães são tiranossauras”, Marcela costura suas experiências sensoriais em um diálogo poético com sua errância e as fugazes lembranças da infância. A permanência de sua pré-história é apreendida através das pequenas cenas do cotidiano:

é nas coisas frívolas que percebo

a insistência de ti

correspondências que ainda chegam

vestígios de doce de manteiga no armário

cartelas de analgésico sem validade

o baralho solitário na gaveta

 

Em  Diário de um luto, Barthes ao olhar uma fotografia da sua mãe, pondera: “ao longe – diante de mim”,  no caso de Marcela se houve um tempo legítimo para despedir-se, este se perdeu na memória, o que há é o luto persistente causado não apenas pela partida precoce de sua mãe, mas, como a própria autora pontua em entrevista para a revista Mirada, é o luto que o brasil nos obriga a viver com a dor do genocídio causado pelo governo federal durante a pandemia. É uma dor perene que insiste em latejar. No poema “lembranças póstumas das férias de verão de quem se esqueceu de viver as férias de verão”, Marcela projeta em nós imagens de nossa própria existência:

eu poderia escrever sobre a quase banal beleza da praia

sobre as incríveis mulheres esculpidas num bronzeado impecável

ou sobre a desenvoltura dos homens jogando qualquer coisa na areia

enquanto escondem os olhos do esplendor do dia

mas isso tudo aparece na fotografia

só não aparece

: o momento telepático

em que divido o pensamento contigo

as cócegas da areia fina tilintando em teu ouvido

os círculos azuis dançando ao redor do violão

o sal magnetizando e colando a nossa pele

não

nada disso aparece na fotografia

e tampouco aparece pra onde tu foste

depois do adeus último do sol

 

Todas as mães são tiranossauras traz a poética corajosa que evoca em nós a possibilidade do reencontro que pode ser traduzido para além da condição feminina, mas nos laços afetivos que permeiam essa jornada, assumindo perspectivas que ultrapassam o universo literário para uma conexão pungente com o leitor. Atentem para a última estrofe do poema  aos homens que usam alguns gramas de analgésico para fingir uma ilusão:

 

 

eu ainda uso as mesmas roupas

aqueles farrapos históricos que sobraram dos anos 80

cheios de rostos que são como cemitérios

a sua dor de cabeça vem do centro de sua mãe

e ela dói como dói uma mulher

por sermos diariamente extintas

e tiranossauras



 *Você também pode acessar essa resenha aqui: Laudelinas

 

 

 

Marcela Maria Azevedo é uma errante – na vida e na poesia. Nasceu num 29 de fevereiro – o dia mais raro do mundo – na cidade Petrolina-PE e, talvez por isso, por carregar a raridade do mundo na carne, tenha feito sua trajetória atravessando o país de leste a oeste, de norte a sul. É também pesquisadora das palavras, faz doutorado em teoria psicanalítica, onde estuda a obra do poeta Max Martins, seu favorito, o que a garante também ser uma pesquisadora do amor. Seu primeiro livro ~ todas as mães são tiranossauras ~ será lançado em 2021 pela editora urutau.

 




 


Rebeca Gadelha
é otaku, gamer e artista digital. Formada em geografia pela Universidade Federal do Ceará, tem um fraco por criaturas peludas e gorduchas. Trabalha com edição de vídeo do Literatura & Libras (@literaturalibras), diagramação de livros e na organização de projetos literários no Selo Mirada. "Reminiscências" (Selo Mirada, 2020) é o seu primeiro livro.






Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.