por Iaranda Barbosa___
A vida de
Nawal El Saadawi se confunde com a vida das personagens – fictícias e reais
– presentes em suas narrativas. Digna de filmes e livros, a escritora egípcia,
médica psiquiatra e ativista social nos apresenta A mulher com olhos de fogo,
cuja protagonista é Firdaus, na véspera de ser executada por enforcamento por
haver matado um homem.
O livro
traz de forma explícita e potente a situação das mulheres tanto no contexto
rural quanto urbano, travessia essa realizada e contada por Firdaus, que sofreu
inúmeras violências desde que chegou ao mundo. Tratada como objeto descartável,
teve uma vida desprovida de escolhas, pois, na sociedade ali retratada – e que
obviamente ainda é a realidade de muitas sociedades, inclusive a nossa –, as
relações de poder estão pautadas no gênero, na divisão sexual do trabalho, na exasperação
da objetificação do corpo feminino.
El
Saadawi faz parte de uma série de escritoras que rompem com estereótipos de
representações da mulher, de África e de uma estrutura discursiva sexuada, de
dominação masculina. A mulher com olhos de fogo é uma obra de
não-ficção-criativa centrada na mulher e em suas vivências e não no
neocolonialismo/imperialismo europeu ou nas consequências do processo de
descolonização, das lutas anticoloniais e dos processos de independência. Portanto,
a mulher assume a própria voz por meio da voz de outra mulher:
Deixe-me
falar. Não me interrompa. Eu não tenho tempo para escutá-la. Eles virão me
buscar às seis horas da tarde de hoje. Amanhã de manhã eu certamente já não
estarei mais aqui. Nem aqui nem em nenhum outro lugar deste mundo. Essa viagem
rumo ao desconhecido, a um lugar onde ninguém neste mundo jamais esteve, me
enche de orgulho. Durante toda a minha vida eu busquei algo que me enchesse de
orgulho, que me fizesse sentir superior a toda e qualquer pessoa, superior até
mesmo a reis, príncipes, chefes de estado. Sempre que eu abria um jornal e me
deparava com a fotografia de um desses homens de grande importância eu cuspia
nela. Eu sabia que estava apenas cuspindo num pedaço de jornal que poderia usar
para forrar as prateleiras da cozinha. Mesmo assim eu cuspia neles, e depois
deixava o cuspe secar no lugar.
O
livro, escrito após o encontro entre a autora e Firdaus, na prisão de Qanatir,
é apresentado em alguns resumos encontrados na internet, e até mesmo pela
opinião crítica, como o relato de uma prostituta que matou o cafetão.
Entretanto, ao avançarmos na leitura percebemos que tal afirmação é rasa,
superficial, pois não dá conta da profundidade referente às problemáticas que
as palavras de Firdaus revelam. Ela é uma mulher que, após diversas estratégias
de sobrevivência, foi lançada à prostituição devido a uma sociedade machista e
patriarcal onde a mulher não passa de mero objeto e que encontrou em seu
próprio corpo um meio de empoderamento, poder de decisão, domínio de si mesma e
possibilidades de escolhas:
Quantos
anos da minha vida se passaram antes que eu me tornasse realmente a dona do meu
corpo e de mim mesma, para fazer o que eu bem entendesse? Quantos anos da minha
vida se perderam antes que eu arrancasse a mim mesma e o meu corpo das garras
das pessoas que me mantiveram em seu poder desde sempre? Agora eu podia
escolher a comida que eu queria comer, a casa na qual eu preferia morar,
recusar um homem pelo qual eu sentisse aversão, por qualquer motivo que fosse,
e escolher o homem que eu desejava ter, mesmo que fosse por suas unhas limpas e
bem-cuidadas. Um quarto de século já havia passado.
Conforme
encontramos já no prefácio, escrito por Mirian Cooke, estamos diante de:
“Uma pessoa que foi privada da capacidade de confiar e vive à margem da
sociedade; ela é a sombra de um ser humano. Tal pessoa vive por instinto, e
suas avaliações e considerações não vão além da necessidade imediata de
sobrevivência”. Nesse sentido, a mulher necessita estar com o instinto de sobrevivência
em constante estado de alerta, pois está vis a vis com os privilégios
masculinos que a subjulgam, escravizam, inferiorizam e matam. Embora pensemos
que o acesso à educação seja um dos meios para sair dessa realidade, não
podemos perder de vista que existe todo um contexto social e histórico que
legitima violências, inclusive no casamento, bastante intrínseco à tradição,
pelo fato de ser uma prática inserida em uma religião que destina às mulheres
papel de obediência e silêncio. Além disso, tal sacramento é, muitas vezes, o
único destino da mulher e, portanto, inculca ainda mais as ideias de obediência
e controle:
Em
certa ocasião ele me deu uma grande surra com seu sapato. Meu rosto e meu corpo
ficaram inchados e cheios de contusões. Então eu fui embora de casa e procurei
meu tio. Mas o meu tio me disse que todos os maridos batiam nas suas mulheres,
e a esposa do meu tio ainda comentou que ela mesma apanhava do seu marido com
frequência.
Eu
respondi que meu tio era um xeique respeitado, bem versado nos ensinamentos da
religião, e que, portanto, não era possível que ele tivesse o hábito de bater
na sua mulher. Ele retrucou que eram justamente os homens versados na sua
religião que batiam nas esposas. Os preceitos da religião permitiam tal
punição. Uma mulher virtuosa não devia se queixar do marido. O dever dela era a
perfeita obediência.
Cada
página da obra de Nawal El Saadawi nos revela que o papel das mulheres
naquela sociedade está determinado desde o nascimento e que os homens têm, além
de privilégios, poder de escolhe e de decisão, inclusive sobre elas. A voz
narrativa constrói imagens e se centra na ação. As raras descrições aparecem
apenas para compor os sentimentos, as reflexões e, sobretudo, as críticas de
Firdaus:
– Você
é uma criminosa – o policial me disse. – E a sua mãe é uma criminosa.
– Minha
mãe não é uma criminosa. Nenhuma mulher pode ser criminosa. Para ser um
criminoso é preciso ser um homem.
– Como
é? Do que você está falando, afinal?
– Estou
dizendo que vocês são criminosos, todos vocês: pais, tios, maridos, cafetões,
advogados, médicos, jornalistas, e todos os homens de todas as profissões.
– Você
é uma mulher violenta e perigosa – disse
um deles.
– Eu
estou falando a verdade. E a verdade é violenta e perigosa.
Vale ressaltar
que devemos ter em mente o cuidado para não condenarmos o “outro”. As decisões
tomadas por mulheres como Firdaus – e tantas outras – se pautam no instinto de
sobrevivência, na fuga para evitar serem trocadas por animais, na luta para não
morrerem de fome. Devemos nos vigiar para evitarmos pensar na “sociedade do
outro”. Afinal de contas, estamos isentos dessas problemáticas? Somos
diferentes? Superamos essas violências? As situações descritas no livro são exclusividade
do “mundo” muçulmano?
Nawal El Saadawi, foi uma escritora, médica, psiquiatra e feminista egípcia. Escreveu muitos livros sobre o tema das mulheres no Islã, prestando especial atenção à prática da mutilação genital feminina em sua sociedade. Ela foi descrita como "a Simone de Beauvoir do mundo árabe. Para saber mais: clica aqui
Iaranda Barbosa, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. A referida novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.