Elas marchavam sob o sol, de Cristina Judar

 

por Isabela Sancho__




Coros e solos em Elas marchavam sob o sol, de Cristina Judar

 

“eu gostaria de ver o rosto de patricia arce

sem tinta vermelha e suplício nos olhos

trinta braços e seus mata-leões”

 

trecho de Patricia Arce, poema de Helena Zelic

 

 

Em Oito do sete, primeiro romance de Cristina Judar, é possível já ter contato com o suntuoso de sua voz autoral: ora tal voz é emprestada para personagens humanas, ora para outras a quem essa condição escapa e que, no entanto, pela via da palavra, se antropomorfizam. É assim que podemos saber por onde flanam as asas de Serafim, ou aquilo que perpassa o corpo de Roma, território devastado e monumental.


Essa voz se modula na construção das diferenças entre uma personagem e a outra, persistindo sempre em certo vestígio melódico, de assonâncias poéticas bastante encorpadas. A vigorosa volúpia na escrita de quem se regozija com a palavra - a detém, a domina, a invoca a seu bel-prazer -, se refaz em Elas marchavam sob o sol, segundo romance de Judar.


Aquilo que em Oito do sete se anunciava, permitindo escutar não apenas anjo e cidade, mas também Magda e Glória, no novo romance se estilhaça em multiplicidades: para além das protagonistas Ana e Joan - cujos discursos caminham lado a lado e de fora a fora, fazendo-se dualidade estruturante da narrativa -, podemos ler, dessa vez, uma profusão de inúmeras vozes inéditas e inauditas, que surgem uma vez só, para nunca mais retornarem.


É por via dessas inserções que faces diversas da perseguição política se fazem escutar, com a brevidade de um grito arrefecido, mas insistente. É nessa marcha que Judar entoa os coros de uma literatura sul-americana que, como o poema Patricia Arce, da Helena Zelic, nomeia às claras a brutalidade do reacionarismo, ao mesmo tempo em que sola, singularizando uma luta em próprio nome.


Não à toa, a epígrafe do livro é constituída pela Revolutionary letter #49 da poeta Diane Di Prima, que nomeia as muitas escalas do aprisionamento político, sendo, em Elas marchavam sob o sol, apresentada em língua original, não traduzida; escolha nada ingênua, que traz a voz da poeta tal qual a mesma a enunciou: sem mediações, de primeira mão.


Assim também o faz Judar, que, do mais intimamente inaudível – metaforizado em um feto preservado em formol - à resistência mais explícita – a das mulheres violadas pela ditadura brasileira –, conjura a iminência dos encontros. Correndo os meses da narrativa à revelia de desfechos conclusivos, Elas marchavam sob o sol nos deixa à beira de uma afronta e um deleite dos quais só podemos suspeitar.

 



Cristina Judar é escritora e jornalista, de São Paulo, capital. É autora do romance Oito do sete, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e finalista do Prêmio Jabuti do mesmo ano. Escreveu o livro de contos Roteiros para uma vida curta  ̶  Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014. Também publicou as HQs Lina e Vermelho, Vivo. Seu segundo romance, “Elas marchavam sob o sol”, foi lançado no primeiro semestre de 2021 pela editora Dublinense.

 




Isabela Sancho é escritora, ilustradora e psicanalista. Autora dos livros “As flores se recusam” (Patuá, 2018 – menção honrosa no Prêmio Literário Glória de Sant’Anna, Portugal, 2019), “A depressão tem sete andares e um elevador” (Penalux, 2019 – menção honrosa no Prêmio Literário Glória de Sant’Anna, Portugal, 2020), “Monstera” (Urutau, 2019 – finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura, Brasil, 2020) e “Olho d’água, espelho d’alma” (Folheando, 2020 – primeiro lugar no Prêmio Literatura e Fechadura, Brasil, 2019), além da plaquete “Quem fala em seu nome” (Primata, 2019).