por Yvonne Miller__
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Acordo não sei por quê. Lá fora ainda está escuro. Se
bem que nunca está realmente escuro; para isso teria que ter um apagão bem
grande, daqui do Meireles até o porto do Mucuripe. Quero nem saber quanto de
impostos vai embora nas contas de luz do porto. Mas não acordei por isso. Talvez
tenha sido pelo gato. Ele acostuma dormir ao meu pé e de vez em quando acha
graça, no meio da noite, pular em cima da minha perna e fingir que está lutando
com uma cobra. Mas desta vez também não foi isso. Ouço um barulho vindo da
sala.
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Tranquei a porta do apartamento? Sem me mexer
espio para fora do quarto. Na penumbra da sala, sombras e mais sombras. Distingo
a estante de livros, o balcão da cozinha, a mesa de madeira com a samambaia. As
folhas se mexem levemente na brisa da madrugada. Tudo está em silêncio. Já
começo a desconfiar que não ouvi barulho nenhum. Coisa da minha cabeça, essa
mania de ficar inventando histórias. Com certeza não foi nada. E agora me
lembro: tranquei a porta sim. Coloquei a ração do gato, bebi um copo d’água e,
caminho ao quarto, tranquei a porta. Pronto. Tranquilizada, fecho os olhos.
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E aí o ouço de novo. Mais alto do que da primeira vez.
Um arrepio frio sobe pelas minhas costas. Não há dúvidas. O barulho vem da
cozinha. Um som metálico, como quando o gato não quer aceitar que a ração
acabou e continua passando a língua áspera pelo fundo do pratinho em busca de
mais um pedacinho de carne, mais um restinho de molho, e assim vai empurrando a
tigela pelo chão da cozinha. Só que o gato não está na cozinha.
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Erguido ao lado dos meus pés, petrificado e com o
rabinho arrepiado, os olhos arregalados, fita o balcão da copa, de onde emergem
os barulhos estranhos. Nem ele nem eu temos coragem de sair da cama, e agradeço
mentalmente à prefeitura e à administração do porto pelo impecável
funcionamento dos postes de luz. Afinal, quem paga essas contas sou eu. Só
espero que não haja um apagão!