por
Marcela Güther/Divulgação__
Publicada
pela editora Patuá, escritora capixaba estreia com coletânea de contos que
abordam, com intimidade e sem romantização, o impacto das mazelas sociais na
subjetividade das mulheres
“Carla
utiliza a sua linguagem elegante, que atravessa os nossos olhos vidrados na
página e chega com pés flutuantes diretamente nas coisas que fazem o nosso
coração parar. [...] o fato, caros leitores, é que estamos diante de uma
Escritora que conhece os desvãos da alma humana. É por isso que dói. É por isso
que ela nos tem.”
Aline
Bei,
na orelha de “O som do tapa”
Em "O
som do tapa" (Editora Patuá, 2021, 112 pg.), a capixaba Carla Guerson
faz a sua estreia colocando a faca na ferida, destrinchando os impactos
causados pelos diversos tipos de violência, muitas vezes invisíveis, na
subjetividade das mulheres. Ao longo de 28 contos, a escritora aborda temas
como solidão, estupro, violência doméstica, perdas, maternidade,
relacionamentos abusivos, sobrecarga feminina, conflitos familiares,
sexualidade, autoimagem, entre outros assuntos — um verdadeiro apanhado sobre o
que é ser mulher na nossa sociedade. A obra conta com apresentação da escritora
Aline Bei.
O conto
que intitula a coletânea deixa claro o estilo da autora: sua escrita é direta,
envolvente, contempla medos e segredos comuns às mulheres. Suas personagens
femininas são marcantes e abrangem diferentes faixas etárias e classes sociais,
apresentando uma seleção muito rica de tipos femininos, desprovidos de
romantização. Carla Guerson também se dedica a captar fatos pequenos,
cotidianos, muitas vezes desprezados na literatura padrão, que são recorrentes
na vida das mulheres. Em todos os contos, percebe-se uma voz que almeja
entender e romper os padrões.
“É um
livro sobre mulheres e que traz a violência como tema recorrente (embora não
único). Mais do que isso, eu quis retratar como a violência, mesmo que não
sentida na pele, nos afeta. Como o som de um tapa: que reverbera e pode ser
escutado (e sentido) mesmo por quem não foi pessoalmente atingido. É este som
que nós, como mulheres, escutamos todo o tempo. Toda mulher entende sobre
violência de gênero e não precisa ter apanhado para isso. Basta existir
enquanto mulher na sociedade. Por isso o “som” do tapa e não o tapa em si. Com
o desejo de que esse som reverbere nos leitores”,
explica Carla.
Para a
escritora e poeta mineira Thaís Campolina, trata-se de um livro
protagonizado por mulheres desabando, deslocadas no mundo que vivem, fora
daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. “Mesmo com experiências,
idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas
personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na
subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem
algumas mulheres específicas podem trazer”, escreve.
“Esses
contos parecem carregar - especialmente - a Poesia que há nos desenganos, uma
minúscula pérola (ou pétala) dentro de cada ferida”,
analisa Aline Bei, na orelha do livro. “Carla tece suas histórias com
ternura. Força. Sensibilidade. Parece que estamos abrindo a mala do mundo e o
mundo é uma Mulher.”
Um
mergulho na psiquê feminina
Diretamente
influenciada pela escrita de Elena Ferrante, em “O som do tapa” Carla
destrincha as diversas facetas do feminino. A autora explora o universo íntimo
e cotidiano das mulheres, perpassando relações familiares e amorosas. Uma
grande parte dos contos são narrados em primeira pessoa, o que proporciona ao
leitor um mergulho na mente de cada personagem, compreendendo seus pensamentos,
dilemas e angústias. “Sou apaixonada pelas pessoas e pelo que elas carregam,
os traumas, os medos, as maluquices. Gosto do diferente, do que aquela pessoa
tem de especial, de triste, de nojento. O que sai do padrão, o que está oculto,
o que não pode ser dito, tudo isso me interessa”, destaca Carla.
“Ser
impactante é um efeito que revela o quanto essa leitura é necessária. Ficamos
chocadas porque nos reconhecemos em cada conto em trechos que contemplam os
nossos maiores medos – como estupro, violência doméstica, perda das pessoas que
amamos e incompreensão da família -, segredos íntimos – maternidade não
romantizada, o sexo (que tantas vezes nos é revelado como algo errado) – e,
ainda, a distância que estamos dos padrões que nos querem forçar a seguir –
aqui entra a rotina sufocante das mulheres com os seus acúmulos de tarefas
(distante da ideia de que somos aptas a dar conta de tudo) e as questões de
corpo”, analisa Michele Fernandes, escritora e crítica
literária.
Ler e
escrever sobre mulheres: uma forma de resistência
Feminista
e estudiosa do feminino, Carla se dedica a ler e divulgar obras literárias
escritas por mulheres desde 2016. Nascida em Vitória (ES), onde reside, escreve
contos, crônicas e poemas e tem textos publicados em diversas revistas
literárias, coletâneas e antologias. “Todos os contos levam algo de mim.
Mesmo os que não tem nada de autobiográfico, são escritos a partir da minha
percepção, do que eu vejo, do que eu sinto, de como eu me colocaria naquela
situação. Eu gosto de tentar me colocar no lugar do personagem, de viver na sua
pele. Os leitores apontam que enxergam uma narrativa íntima, quase pessoal.
Escrevo a partir do que eu vivo e muitas histórias são inspiradas em coisas que
ouvi ou vivenciei com amigas, conhecidas e parentes”, conta.
Carla
Guerson frisa a influência direta de escritoras mulheres, desde as
clássicas, como as irmãs Brönte, até as contemporâneas. “Começar a
ler mais mulheres foi essencial na busca pela minha voz literária. Elena
Ferrante é uma grande referência para mim, com ela aprendi que é possível ser
profunda, leve, fácil e complexa ao mesmo tempo. Dentre as brasileiras contemporâneas,
destaco a Aline Bei, que foi minha professora, mentora e que escreve com uma
entrega completa, tem um talento incrível para tocar o leitor”, elenca.
A
escritora também cita nomes como Conceição Evaristo, Carola Saavedra,
Carla Madeira, Renata Belmonte, Veronica Stigger, Nara
Vidal, Maria Valéria Rezende e Eliana Alves Cruz como suas
inspirações. “O conto “Dormente”, por exemplo, foi escrito após concluir a
leitura da obra “Com armas sonolentas” da Carola Saavedra. Uma das
frases ficou ressoando em mim até que consegui elaborá-la por meio da escrita”.
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Leia um
trecho do conto “É menina”, que compõe “O som do tapa”:
“Mas
foi no dia que o médico me contou o seu sexo que o meu mundo começou a
desmontar. Porque eu não sabia o que eu podia providenciar para te preparar
para ser mulher aqui junto comigo. Eu não sabia como te contar das coisas que
passei e como te ensinar o que eu nunca aprendi. E por isso eu chorei, e ainda
choro.
A
primeira coisa que eu escolhi foi o seu nome. Vai se chamar Helena, como a
minha avó. E sem querer te marquei com tudo o que você vai carregar para o
resto da vida. Minha herança, o que eu tenho para deixar para você, é só isso
mesmo, esse ser mulher. Mulher como eu, como a sua avó e sua bisavó.”
Carla Guerson é escritora, feminista, geminiana e a favor dos incômodos. Escreve contos, crônicas e poemas e tem textos publicados em diversas revistas literárias, coletâneas e antologias. “O som do tapa” (Editora Patuá, 2021), é seu primeiro livro.