por Taciana Oliveira__
Perto
No cafundó da minha alma
onde libélulas bicolores
se cumprimentam
mora a certeza de que a razão
atrapalha a beleza do infinito.
A falta de protocolo dos sentidos
eu assino com incenso.
Na razão, conheço o fundo das minhas rugas
os calos sem lógica dos pensamentos.
Nos sentimentos,
a idade é um eterno cochilo de menina
depois de brincar de bonecas
farta de estações de deslumbramento.
No cafundó da minha alma
onde peitos enormes
me amamentam
mora o meu maior rebento:
a habilidade da loucura
sem julgamentos.
Semiótica e semi-deuses
eu queria subir em um tsuru
olhar bem antes
para o seu dégradé de cores
e rir da sua longevidade jovem de mil
anos
é um pesar ser tão eterno
(triste ou feliz) sem descanso
sem desmame do tempo
eu queria ir do Japão para a China
no seu grou amarelo poeta Calixto
destruir e reconstruir a Torre
sete vezes numa bebedeira cabalística
e trocar as cores das cerejeiras
pelas cores dos pessegueiros
mas não posso: eles também
têm vida longa e próspera
eu queria ter o corpo do Sísifo
as minhas pedras têm o mesmo peso
e rolam do topo todos os dias
se não for pedir muito
ter menos ouvido para escutar
as senhoras disputando
a eternidade antes da missa
(os suicídios estão mais sinceros
que as revoltas)
gostaria de sacolejar bandeiras
todas as cores
e já agora
a maioria cor sangue
mas acho que as pessoas
deveriam enxergar
como os cachorros
espectros azuis ou laranjas
– elas estão bem bipolares
não merecem as cores
cansada: quero
trançar meu cabelo
asilar este momento
e despertar amanhã
menos sóbria e sombria
ver sombra de árvores
no espelho dos meus olhos
e no colo da vida
ser flor das benzedeiras
Aula de anatomia para certas meninas
as meninas de outra época
colecionavam e trocavam papéis de carta
os de seda – os mais valiosos –
amassavam
não eram espichados como o tergal das saias
Na ponta dos dedos toques
sutis:
nervos fibras músculos e enredos
como uma descoberta num mapa
cada desenho uma labareda
a eterna promessa do completo
o papel de carta insinuava
o que não seria estudado na escola:
tesouros de piratas de seus corpos
marés encharcadas de águas-vivas
a ponta da pirâmide, esfinge
o cheiro dos papéis de carta:
orquídeas de Madagáscar
plantas carnívoras
coberta descoberta
lençol não trocado
árvores frutíferas
os envelopes das cartas
ficavam quase abertos
asas de libélulas
retirados em dedos ébrios
com luvas de cetim
de cartolas mágicas
já ouvi falar que as meninas
ardiam seus papéis de carta
em ferros a vapor
sem nenhum rubor
não aprendiam com as mães
mas com as mãos
os papéis importados
forasteiros
abriam-se
como figos na imaginação
um livro pagão
se em blocos
as meninas molhavam
a ponta dos dedos
e desfolhavam
um a um
alguns papéis de carta
se esfregavam dentro
das pastas
assim como as pernas
das meninas ao comprimir
seus travesseiros
tão bem lavados pelas mães
as mãos os dedos
eram cúmplices
assim como
as pernas penas
sem tinta sem álibis
as meninas não falavam
dos seus dedos no recreio
merendeira lacrada:
maçã, bolacha recheada
os meninos preferiam
medir coisas no banheiro
Meninas
de matemática não eram certeiras
de vasos sanguíneos mais festeiras
pequenos montes de eclosão
meninas e seus dedos
os meninos jogavam tapão
as meninas não trocam mais
papéis de carta
algumas ainda guardam suas pastas
tocam-nos como tecido de alfaiataria rara
e sentem o cheiro de notas
das primeiras alforrias
Os galos continuam tecendo a manhã
a criança pinta os pés
da galinha de esmalte
miúdos na bacia
de
alumínio da mãe
o pai fala para o filho
que vai quebrar seu pescoço
se ele entrar no mar de novo
a criança quebra o pescoço da Barbie
a mãe fala que
não vai comprar outra
a mãe e a filha com as unhas pintadas
Os poetas não deixam em paz:
o mar
a galinha
as crianças
os pais
hoje, parece que os
galos cantaram menos.
Depois da vacina
cortar as unhas
afiadas
para escalar o poço da
sarjeta
reconstituir todas as
cabeças
oferecidas de bandeja
grudar os umbigos
no resto de placenta
do planeta
destruir todos os
espantalhos
esses que fingem ser
humanos
não deixar atalho
algum
de como voltar a este
ano
carregar os ossos
deslocados
de todos os
antepassados
colar as partes em
laços
nadar com os sargaços
fazer deles nossos
braços
veias e passos
Aí, sim, encostar
as palmas das mãos
no rosto de Deus
e voltar como um raio
apenas um raio
mas não sozinha
viva pela primeira
vez.
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