por Adriane Garcia__
Gênero
muitas vezes subestimado, a crônica bem escrita é capaz de nos alertar, nos
encantar, nos emocionar. É o que acontece no livro A teoria da felicidade,
de Kátia Borges, no qual a jornalista, poeta e prosadora consegue unir características
dos textos dessas três atividades para compor crônicas tomadas de inteligência,
capacidade de comunicação, sensibilidade e beleza.
Ao começar
com “A centralidade da poesia e sua poderosa força”, em uma narrativa
que fala do encantamento diante do novo e das possibilidades de aprendizado, Kátia
Borges nos dá as pistas sobre aquilo que vai se constituir a sua teoria da
felicidade. Mais de uma vez, o texto é povoado por avós, tios, primas e primos,
amigas e amigos de infância, destacando questões de memória e ancestralidade na
construção do sujeito. A isso, soma-se um olhar muito peculiar da narradora,
por quase todo o conjunto: é a poesia que faz observar a aerodinâmica das aves,
é o alumbramento diante da magia do mundo e o sentimento de empatia que faz com
que a pessoa não possa prosseguir com a violência do apedrejamento de um
pássaro. A grande recorrência é a da palavra infância, pois é nela que A
teoria da felicidade se apoia. O tesouro para suportar os exames da
realidade, destruidores de tantos sonhos e ilusões, são as fotografias de
memória, tiradas por “Polaroides sentimentais”.
É de se
notar, que a “playlist mnemônica” destacada em “Uma menina vinda de
Marte”, que também poderia se chamar playlist afetiva (pois é desta memória
que a autora nos fala), marca uma série de outras crônicas, mostrando o quanto
o referencial da música compõe A teoria da felicidade, assim como
referenciais do cinema e da literatura, constituintes de uma história pessoal
no seu encontro/desencontro com o mundo. Poderíamos até dizer que Kátia
Borges escreveu um livro de “crônicas de formação”, nas quais uma menina
cresce e se educa, e cujo papel educacional mais importante é demonstrado na
personagem da mãe, aquela que diante do inseto verde ensina para a menina “Sobre
a fragilidade da esperança”, o respeito pela vida. Assume-se assim o inseto
verde e sua simbologia, o cuidado que deve ser ensinado para tratar o mais frágil
– a vida é frágil. Esse aprendizado é formador de caráter. A mãe educa para a
vida. O inseto representa esperança, mas também sorte. O aprendizado ético continua
em “Minha mãe possuía uma coragem que não se acha fácil”. Kátia
Borges nos mostra que a infância, também lugar de crueldade, de forças
destrutivas que ainda estão aprendendo a encontrar caminhos menos perigosos e
fatais para sua realização, pode se encaminhar para o exercício criativo, a generosidade
e o altruísmo, aula que a mãe ministrou de mãos dadas com a filha e com o olhar
atento ao outro. A teoria da felicidade inclui solidariedade. Uma vez li
que o contrário do amor não é o ódio, que o contrário do amor é o medo. A filha
queria a coragem da mãe, porque coragem é um outro nome para amor.
No
conjunto das quarenta e três crônicas, o tempo se apresenta quase em
linearidade, não fosse a insistência da memória em atravessar portais e
dimensões. Olha-se para trás, lá onde a teoria da felicidade deve se ancorar
porque houve um aprendizado, uma capacidade. O pediatra e psicanalista inglês Donald
Woods Winnicott diria que houve a nossa bendita ilusão de
onipotência, quando a fantasia precedeu toda realidade. Nas crônicas de Kátia
Borges, parece sempre haver esse lugar maravilhoso de voltar, cujo encontro
(reencontro) se torna possível nas palavras “veraneio” ou “mãe”,
no que elas evocam, no prazer das férias, da família reunida, da saciedade, do
tempo mítico e do prazer. Depois – já que falamos de tempo – o mundo se coloca
para nossos embates, Kátia Borges escreve sobre a estranheza dos rostos
de ontem, esse fenômeno afetivo de, nas fotografias de antes, não reconhecermos
mais nem a nós nem aos outros, habitantes do presente.
Descobrimos
que a Teoria da Felicidade foram conselhos de Albert Einstein
escritos em bilhetes para um camareiro, no lugar de gorjetas. Alcançando a
idade adulta, a narradora – que nos parece única – estará à procura de tal teoria
(e prática), intuindo que a felicidade está nas coisas simples, nos pequenos
gestos do cotidiano, no protesto contra a pressa capitalista: “Em câmera lenta,
venceremos, se é que se há de”.
Em uma
época na qual os apelos por fórmulas de felicidade abundam, assim como o número
daqueles que publicam livros e fazem posts nas redes sociais garantindo
ensiná-la, um título como A teoria da felicidade pode parecer, bem à
primeira vista, uma promessa. Porém, caso a leitora e o leitor pensem que Kátia
Borges possui essa receita, cairão em engano. Trata-se de literatura, não
de charlatanismo. Há uma confissão humaníssima sobre a falta e a busca, sobre a
transformação que os eventos vão operando em nós – como a morte de nosso tão
amado cão; há um humor sem escândalos e sem excessos e que, por isso mesmo, nos
surpreende com pitadas deliciosas de riso em meio à leitura:
“Sou
afeita a aconselhar os outros, confesso; é quase um esporte. Basta um amigo
abrir a boca e fazer uma queixa, que elaboro em segundos o plano perfeito.
Soluções para espinhela caída, nome no Serasa e amores que não deram certo?
Temos.”
Entre
soluções que quase nunca solucionam e ainda ter que lidar com o esquecimento –
que é perder conscientemente um tanto do que somos – o jeito é criar um software
de memória chamado livro, registrar alegrias, frustrações, imortalizar os
inimigos, por exemplo. Escrever é admitir as falhas. À medida que o livro se
encaminha para narrativas que privilegiam a idade adulta, os conflitos vão se agravando,
palavras como “depressão” surgem; o meio literário e sua política e
mercado comparecem; da adolescência em diante, a tristeza também pode passar a
ser alimentada: “Afaguei a tristeza por tanto tempo, que ela se apegou a mim”.
Trecho que me remeteu a outro cronista, Paulo Mendes Campos, em Para
Maria da Graça: “Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa
se abandona de tal forma ao sofrimento, com tal complacência, que tem medo de
não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o
enfeitiçado.”
Kátia
Borges evoca A arte de perder, de Elisabeth Bishop. Ambas
sabem que “a arte de perder não é nenhum mistério”, talvez porque perder
seja uma de nossas primeiras experiências. Para Freud, “A meta
inicial e imediata do exame de realidade não é, portanto, encontrar na
percepção real um objeto correspondente ao imaginado, mas sim reencontrá-lo,
convencer-se de que ainda existe”. Neste sentido, todo encontro é
reencontro e, por isso, tomado de saudade.
É de
saudade também que Kátia Borges nos fala. Há uma nostalgia em A teoria
da felicidade, o assombro de um tempo em que, parece, fomos felizes. Chama a
atenção também as crônicas de amor aos cães e sobre o amor dos cães. Um
destaque especial para estes seres que nos acompanham como verdadeiros amigos,
“anjos”, diz a autora. São páginas especialmente emocionantes que falam
sobre amizade, entrega, alegria, doença, morte.
A
teoria da felicidade canta Belchior, “A felicidade é uma
arma quente” (ou Happiness is a warm gun, dos Beatles). Nela
cabe a admiração por outras mulheres, a vontade de crescer como se houvesse ali
uma boa promessa, a diversão, a descoberta da sexualidade. Para descobri-la,
vale consultar oráculos, recorrer ao budismo, às teorias que ensinam a fluir
sem tanta resistência. A busca incessante por não buscar, com todo o seu
paradoxo; desejar não desejar, ter a ambição máxima que é a ambição mínima, encontrar
a origem. No princípio era o verbo? Kátia Borges parece nos dizer
que no princípio era o silêncio. Por fim, escrever e principalmente publicar na
contramão deste desejo de paz, já que é a exibição que rege o que se chama de
sucesso: “Desde que entrou nesse labirinto, algumas vezes lhe faltam pernas
para ir adiante”. Ser escritora é praticar uma atividade de luta, de
condições desiguais entre pares nem tão pares assim, é ter um encontro com a “escritora
amarga” e sair correndo de lá para não se tornar mais uma.
“Não
me peçam nada de importante, pois sou apenas uma poeta de província. Meu maior
elogio foi o beijo que uma moça me deu no rosto. “É por sua poesia”, ela disse”.
Pois
vai, Kátia, junto com esta leitura que registro do seu livro, de crônicas
habitadas por lirismo, força e delicadeza, o meu beijo: é por sua poesia.
“Viveremos
dessa felicidade doce que nossos pais ensinam nos veraneios desde a infância,
quando até os tios mais sisudos mostram as pernas, molham os pés, bebericam e
perdem a compostura. É preciso parar um pouco, de vez em quando, feito o Sol no
céu no dia mais longo do ano. Como no belo poema de Maiakovski, que virou pop
pela mão dos Irmãos Campos, é imperativo criar versos luminosos em um mundo
escuro.”
(Excerto
da crônica O dia mais longo do ano, p. 111/112)
***
A
teoria da felicidade
Kátia
Borges
Crônica
2020
Ed.
Patuá
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.