por Germana Accioly___
Hoje é
sábado.
Hora de
colocar o lixo pra fora. Repito esta rotina às terças, quintas e sábados,
sempre depois das 20h. Já coloquei até alarme no celular pra não esquecer. Sou
até meio relaxada com algumas rotinas, mas não gosto de deixar o lixo acumular.
Enquanto
recolho os diversos saquinhos da casa e preparo o volume maior pra levar à
calçada, revisito a minha tarde.
Há dois
anos vim morar numa quadra que tem um cinema, sonhando em pelo menos uma vez
por semana assistir a algum filme. Pensei em tardes leves, pipoca, café depois.
Imaginei o lúdico de chegar do trabalho, comer qualquer coisa e correr pra não
perder a sessão das 19h.
Tudo
meio comédia romântica, admito.
Mas eis
que, dois dias depois que mudei, começou o confinamento. Bye, bye sonho
semanal. Hello, distanciamento social!
Hoje
fui ao cinema pela primeira vez desde o início da pandemia. Decidi matar a
saudade dilacerante da telona. Eu na minha companhia. Aquele ritual: cheguei,
comprei meu bilhete e esperei uns quinze minutos para entrar na sala. Sala 1.
Marighella. Sentei, ainda meio desconfortável, perdi o costume. A máscara
incomodando um pouco... aliás, decidi não comprar pipoca. Hoje era eu e o
filme, sem intermediários. Escolhi um assento bem no corredor e eu era a única
pessoa da fileira G.
A
projeção começa e a gente na sala precisa gritar pra apagarem as luzes. Acho
que está todo mundo meio sem prática. Tudo bem. Luzes apagadas.
Um
pouco com medo de tanta verdade violenta, um pouco assustada com tanta
crueldade, encantada com um filme tão bom. Fiquei ali por um tempo procurando
não me misturar com o enredo.
Inútil.
A
política ferve nas veias. A injustiça acelera o peito. Eu quase pulei da
cadeira pra tela. Minha covardia passiva (isso é uma redundância necessária)
sentada na cadeira começava a incomodar. Eu quase brigando comigo mesma.
Marighella
é gatilho.
Aplausos
ao final, como se fosse teatro. As poucas pessoas que assistiam à sessão
gritaram palavras de ordem. Eu só conseguia produzir lágrimas.
O
cinema ficou vazio. A tela ficou apagada. As luzes acenderam. As pernas
tremiam.
Marighella
veio comigo entranhado no pensamento, nos sentimentos, na revolta.
Não é
entretenimento. É arte. Bate na cara da gente, dá nó nas tripas, encarcera
sonhos, abocanha desejos.
Marighella
me fez várias perguntas depois que acabou a projeção. Prolixo.
Nem
sempre a arte salva. Algumas vezes te atropela que nem o caminhão do lixo.
É arma
de extermínio.
Perdi
um pouco mais da inocência. Ou seria da esperança?
E aqui
estou num sábado qualquer, cuidando do meu lixo, carregando a culpa de ainda
não ter aderido à coleta seletiva. O desta semana tá pesado. Um fardo.
Há que
se respeitar os gatilhos, sob pena de esquecer de si.
Germana Accioly é escritora e jornalista. Publicou “Não é sobre você” (Selo Mirada, 2021). Escreve no blog Perder de Vista.