por Germana Accioly__
Havia uma certa arrogância na
forma como ela usava aquele perfume francês. Uma displicência, ou seria um
desleixo... Anos a fio usando o mesmo perfume, de domingo a domingo, na tentativa
de imprimir uma personalidade, uma marca. Triste objetivo!
Pra dentro, lá no fundo, ela
sabia da sua insegurança. Tinha medo de falar, de expor as ideias. Tinha medo
da própria alma de artista que, de quando em vez, escapava e se anunciava pela
boca. Mas a voz parecia agarrada na garganta, perdia a potência a cada vez que
ela falava de si. Era tanta dissimulação que às vezes nem ela mesma sabia o que
estava vivendo. Quando tentava falar, as mãos gelavam instantaneamente. Melhor
não.
Havia uma certa arrogância,
sim, de creditar ao perfume “Kalvin Klein”, francês (como é isso mesmo???), um
traço da sua personalidade. Essa coisa imaginária, que um produto qualquer que
seja, possa te traduzir.
A arrogância da imaturidade,
que teima em rotular. Quem tem rótulo é perfume, aliás. Gente não deveria ter. Aquele vidro sinuoso, que
lembrava o símbolo do oito deitado, do infinito, era a imagem da sua prisão.
Infinita. Uma prisão de prata e com o líquido lilás. Uma prisão que aumentava à
medida em que o conteúdo do frasco se esvaía. Evaporava junto com a sua
certeza.
Pensando bem... não era “certa
arrogância”.
Era pura arrogância. Um extrato
concentrado.
Só que travestida de elegância,
fantasiada de alma minimalista. O nome do tal aroma? Euphorie. Traduzindo:
Euforia.
Euforia.
Atitude, sentimento, saída de
emergência para os corações inquietos.
Euforia, a alegria superficial.
No seu dicionário, euforia
poderia ser definida como escudo. Um estado de alma para quem vivia em estado
de sítio.
Por décadas, o aroma chegava
antes dela. Era sol, era chuva... era feira ou casamento. Ela usava o mesmo
perfume. Talvez, a única constância no seu estado de espírito.
Colecionava os vidros vazios,
de vários tamanhos. Chegou um tempo em que ela nem comprava mais o perfume.
Quem viajava pra fora já sabia o presente que deveria trazer. As amigas
sugeriam cremes, hidratantes, vitaminas, eletroeletrônicos. “Traz um vidrinho
de euforia pra mim?”, ela humildemente sugeria.
Um vidro de euforia. Uma dose
modesta, ministrada em borrifadas diárias. Uma droga que talvez sua porção
infantil como um superpoder.
Até que um dia, o perfume foi
ficando pesado. Pesava nas roupas. Uma coisa parecida com uma cola. Foi
deixando a euforia da arrogância de lado. O que ela iria colocar no lugar???
Parou de pedir as encomendas
internacionais. Uma vez pediu uma caixinha de música que tocasse “What a
Wonderful World”. Meio esquisito...
Passou a usar o perfume somente
quando saía para o trabalho, “pra economizar”. Sentia nas suas roupas
guardadas, repentinamente, o toque meio adocicado e aquilo em algum lugar
alfinetava. A arrogância persistente do aroma trazia um incômodo profundo.
A sensação de nunca sair do
lugar.
Deixou acabar o último exemplar
do estoque. Uma coisa qualquer não fazia mais sentido.
Ficou sem cheiro. Passou a
sentir seu próprio cheiro, aliás.
Era muito novo.
Sem contorno.
Seria ela?
Foi na farmácia da esquina e
comprou uma lavanda. Gostou de usar em plena luz do dia uma lavanda tão comum.
“É ótima pra ir à feira”, ela definiu.
No dia seguinte, acordou e
quando já ia saindo para o trabalho, da porta, voltou. Olhou pro vidro de
euforia vazio. A coleção de vidros inúteis na penteadeira, como um memorial da
sua vida.
Foi ali no armário do banheiro,
abriu o frasco de plástico transparente esverdeado e aplicou no cangote, nos
pulsos e depois esfregou as mãos uma na outra. O mesmo gesto repetido por
décadas. O mesmo gesto mecânico.
Quem vai me rotular agora?
Estava sem o escudo... ou
seriam as muletas?
Deu os primeiros passos
desconfiada. Foi experimentando outras essências. Foi brincando de cheirar, de
sentir. Eram outros tons e cores e notas.
Um dia, como se nada mais
fizesse sentido, pegou um saco grande de lixo, aqueles de plástico fosco preto,
colocou todos os vasos vazios. Embalagens e rótulos de um tempo vivido. Deu um
nó e levou pra área de serviço.
“Amanhã passa o lixo e levo lá
pra fora”, pensou quando fechou a porta da cozinha. Tanta coisa
guardada por tanto tempo, tanto tempo guardando tanta coisa! Ela tentava
afugentar o trocadilho infame do luxo e do lixo. Do lixo luxuoso...
Não havia euforia na sua
atitude. Sua busca mais profunda começara naquele instante. Seria preciso ter
faro e sensibilidade para as novas fragrâncias da vida. É preciso achar um
perfume menos forte pra identificar onde cheira mal.
Germana Accioly é escritora e jornalista. Publicou “Não é sobre você” (Selo Mirada, 2021). Escreve no blog Perder de Vista.