Por Tadeu
Sarmento__
À
primeira vista, o cenário onde Edimilson de Almeida Pereira circunscreve
seu Front parece distópico: calor, aridez, corpos jogados de
helicópteros, um lixão de entulhos eletrônicos, vaga-lumes elétricos, sirenes
que vêm e vão, blazers com avisos apocalípticos afixados no vidro das janelas. Mas
nada é o que parece ser. Logo percebemos que fomos persuadidos a acreditar na
distopia, ao passo em que a revelação é muito mais trágica: não se trata de um futuro
catastrófico, mas do hoje, do agora de qualquer bairro periférico deste país monstruoso
que exila, dentro dos seus limites territoriais, os cidadãos e cidadãs que
considera de segunda classe. Exila-os em um espaço onde “vive-se no limite da
exigência quando tudo o que se tem é a própria vida”.
Quem
nos persuade no início (e continuará nos persuadindo, em outras chaves, até o
final) é o narrador do livro – o “homem-árvore”. Uma voz sem nome (porque é
todos os nomes) e sem rosto (porque é todos os rostos do bairro) que executa,
com brilhantismo, seu monólogo costurado de digressões. Mais um pouco e vemos
que esse monólogo é, na verdade, rememoração: por ser um homem-árvore, enxerga
além da fila da lotérica onde recorda enquanto espera atendimento. E cada galho
seu é um tempo e um espaço. E cada palavra sua é parte de um organismo que não estranha
nada, colocando cada memória no curso: tanto de um estudo sobre o horror, quanto
de uma perspectiva sobre o racismo. Sim, racismo, afinal de contas, não é por
causa de uma cor transformada em alvo pelo governo e sociedade que “nossos
irmãos erram nos semáforos presos à alma por um fio”? Nesse sentido, o homem-árvore
é também uma árvore genealógica.
Algumas
páginas adiante, e vemos as razões de o homem-árvore ser o portador dessa
consciência social e referências teóricas. Não é só porque sua cabeça “roda
mais veloz do que a nossa” (como dizia dele seu amigo de infância, Silas). Mas
porque ele se instruiu com os livros e revistas que encontrava no entulho quando
criança, guardando consigo pedaços desses códices para ler. Daí a passar a observar
e comparar tudo foi um pulo, depois do qual começa a perceber a função da fila,
dos helicópteros, dos avisos
ameaçadores, chegando à conclusão de que todos ali estão socando “o vento sem
jamais atingi-lo”. Ou “afiando a faca sem saber onde aplicar o golpe”. Uma
mente aguda e iluminada, que dos detritos da civilização percebe ser possível
reagir, como o Hant’a da solidão ruidosa de Bohumil Hrabal. Uma
consciência feroz, crítica e urgente, cuja linguagem é um espelho que, estilhaçado, produz luminosos cacos de
vidro e estrelas, espalhados pela longa miséria do Brasil. Um homem pode dizer
muitas coisas antes de ser calado para sempre, é o que parece nos dizer o
narrador criado por Edimilson para ocupar esse Front: um espaço
estritamente necessário para a sobrevivência, contagiado pela evocação da
revolta e pelo duro aprendizado do amor e sua estranha fúria.
Talvez
por isso o foco principal de Front não esteja nos personagens, mas na
linguagem, já que é através do vírus da linguagem que a mudança virá. Os
personagens? São figuras instáveis. Os sobreviventes do monturo. São aqueles
que, insuflados pela voz que se elevou, não apreciam mais o “arame farpado em
volta do pescoço” e trazem em si o gatilho da revolta. Em Front a
linguagem é a única coisa capaz de acioná-lo.
Uma
outra língua, “que excede de tanta sede”, sendo erguida contra a mensagem
narcotizante dos manuais de usuários encontrados no descarte, através dos quais
o narrador anteviu as várias identidades que poderia ter, já que abriu mão da
própria para criar. Linguagem poética e insubmissa, a qual o narrador compara
com uma bomba, um meio através do qual atrapalhar a falsa paz das filas. Front
reacende o compromisso da literatura com a transformação social. Uma
transformação que é também formal, pois o livro é obra de um estilista
disciplinado, que enxerga nas brechas do texto as janelas pelas quais passar os
sussurros da nova História. E aqui, para deleite da leitora e do leitor, a mão
do poeta afasta o discurso político das águas rasas do panfletário e exige, como
Maiakovski exigiria, uma nova beleza para uma nova sociedade.
E
se escrever é fingir com grande distinção, Edimilson se distingue pela
verossimilhança da sua revolta, conduzindo o fluxo da voz do narrador até
libertá-la de vez das amarras do tempo-espaço, rumo à apoteose final. Um livro
à altura das exigências de sua época, que, de quebra, já nos leva a conhecer,
na epígrafe, uma romancista absolutamente genial: Simone Schwarz-Bart. Pois
Edimilson de Almeida Pereira é, acima de tudo, um grande professor.
Edimilson
de Almeida Pereira
Editora
NÓS
128
páginas
Prêmio São Paulo de Melhor Romance, 2021
Tadeu Sarmento é autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos e E se Deus for um de nós? entre outros. Ganhou o II Prêmio Pernambuco de Literatura e o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura de 2016, com Um Carro Capota na Lua, publicado pela Tercetto. Em 2017, conquistou o 13º Prêmio Barco a Vapor, com o juvenil O Cometa é um Sol que não deu certo, publicado pela Edições SM. Lançou em 2021, O Gato da Árvore dos Desejos (editora Abacatte) e Ester ou Antígona (Editora Uboro Lopes).