por Argentina Castro__
Há
pouco mais de dois meses o pai havia ficado desempregado e o dinheiro da
família estava a findar. No fim de uma
das manhãs de desemprego, ao chegar em casa depois de tanto andar de bicicleta à
procura de outro/novo trabalho, o pai que sempre fora honesto, que sempre fora
cumpridor de seu papel paterno, entra em casa cabisbaixo e em um silêncio
sepulcral. A manhã estava quente, o céu era de um azul tão azul e sem nuvens,
mas impossível de ser visto como uma potente beleza por aqueles olhos que se debruçavam
sobre o chão. A tristeza era tanta e
repousava, sem piedade, sobre os ombros cansados do homem de quase cinquenta
anos e dois filhos para alimentar. Mas, por outro lado, a fé inabalável da
esposa era proporcional à sua tristeza.
Lavou
as mãos, passou água no rosto suado e sentou-se à mesa junto aos pequenos e a
negra mulher que, na juventude, se apossou de seu coração de rapaz também negro
e, também, pobre.
O casal
de gatos sem raça de prestígio, caminhava por entre os pés humanos por baixo da
mesa numa miadeira que dava dó. A fome também assola os animais domésticos em
tempos de crise, como essa que enfrentavam. Era a primeira vez que nas panelas daquela
casa, não havia a "mistura" para compor os pratos junto com o arroz e
o feijão. Nenhum pedaço de carne, por mais magra e sem qualidade que fosse,
nunca havia faltado. Era um pai amoroso e, colocar na boca dos filhos apenas o arroz
e o feijão, era dos constrangimentos, o maior. A esposa, cheia de fé,
reconhecendo a dor daquele a quem um dia decidiu por amor, dividir a vida,
disse – meu bem, vamos pensar que poderia ser pior, pense que muitos, uma hora
dessa, não têm nem esse feijão e nem esse arroz para botar na boca.
A filha,
com pouco mais da metade de uma década de vida, era tão apegada ao pai que, vez
ou outra, botava uma porção grande de ciúmes no coração do irmão mais velho que
ela apenas dois anos. O coração da
menina sofria mais pela ausência da alegria do pai, do que pela ausência da
carne naquela mesa. Seu pai sofria e ela já entendia!
Sob os
pratos rasos, uma toalha plástica ilustrada com alimentos, repousava sobre a mesa
e era tão injusto que nenhum deles fosse real. Linguiça, frango, carne,
verduras, frutas e jarras de suco ali impressos de uma ponta a outra da mesa.
Tudo tão farto! Mas, aos olhos da menina, uma mágica se fazia. Como um anjo que
salva pessoas das piores dores, ela pegou um garfo, olhou para o pai e, quase
espetando a linguiça ilustrada na toalha, disse – você quer essa linguiça pai? – E, à medida que pressionava o garfo contra a toalha
de plástico, sorria com todos os dentes ainda de leite. O pai não sabia se
chorava, ou se ria, mas tentou rapidamente não deixar que a emoção
interrompesse aquele momento tão mágico e lhe respondeu: – filha, me dê só a
metade dessa linguiça que papai tá fazendo dieta – E lá foi a menina brincar de
servir o pai, a mãe e o irmão, naquela mesa farta, imaginária e feliz.
Quando
já não havia nem arroz e nem feijão nos pratos, todos diziam por uma boca só que
nunca tinham comido tanto na vida. O pai, já inundado de uma paz interior, propôs
um brinde com o suco de caju gelado e estampado na toalha. A menina, rápida que
só ela, estendeu seu copo vazio e o pai a serviu, enquanto a mãe servia o
filho. Aos risos e com um bocado de fé, a família atravessou o dia e todos os
outros dias difíceis que estavam por vir.
Anos se
passaram e a toalha, como um objeto mágico e por que não dizer sagrado, passou
a ser posta somente nos períodos mais difíceis. Os dentes da menina já não eram
os mesmos, e a força que lhe movia, menos ainda. Mais difícil do que ter
somente arroz e feijão para comer, era adolescer num universo de empobrecimento.
Isso sim era das coisas da vida, talvez a mais insuportável. Entre um dia
difícil e outro pior, a menina que já não era mais tão menina, deixou de cortar
as linguiças imaginárias e passou a testar a da fé da mãe, cortando a própria
carne dos magros punhos.
Argentina Castro - socióloga, escritora e fundadora da Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias