por Adriane Garcia___
Na
busca das nossas origens, a ciência, a filosofia, a arte e a religião fizeram
perguntas. No mundo patriarcal, a visão androcêntrica determinou tanto as
perguntas, quanto as respostas. Por que isso não teria acontecido também com a
maternidade? Não a maternidade como fato biológico, mas como fato social. A
construção social do conceito de mãe é crucial para a história do patriarcado.
Na diferenciação biológica, a presunção da diferença social como natureza e a
consequente divisão social do trabalho. O homem deduz, e principalmente deduz o
que deduz porque lhe é vantajoso. Como nos ensina Gerda Lerner, em A
criação do patriarcado (ed. Cultrix), “Se Deus ou a natureza criaram
diferenças entre os sexos, que, em consequência, determinaram a divisão sexual
do trabalho, ninguém pode ser culpado pela desigualdade sexual e pela dominação
masculina”. No mundo patriarcal, a capacidade reprodutiva das mulheres é
sua principal função. Se uma mulher que não tem filhos é desviante, uma mulher
que, tendo filhos, contesta a maternidade, é uma blasfemadora. A narradora
protagonista de A filha primitiva, de Vanessa Passos, blasfema.
Grávida
aos vinte e dois anos, em uma relação frágil, cujo namorado não assume a
paternidade, a protagonista narra sua experiência com a filha, um bebê que
receberá os danos de uma maternidade indesejada. Ao mesmo tempo, a protagonista
procura saber sobre seu passado, mais precisamente sobre o pai, de quem nem
mesmo sabe o nome. Como matrioscas do abandono paterno, as três mulheres – a filha
e a mãe da narradora, mais a narradora – seguem suas vidas marcadas pela
violência de gênero, pelo registro inexistente de ancestralidade e, por
consequência, pela falta de uma história que complete as lacunas do passado: “Só
pode ser maldição. Outra que vai crescer sem o pai”. É nesse sentido que Vanessa
Passos constrói uma narrativa que, ao mesmo tempo que busca as origens de
uma personagem, estabelece a escrita literária como invenção para o
pertencimento. É a linguagem que vai tentar fazer a compensação pela memória
perdida.
O
desejo de recuperar a história do seu passado vai muito próximo das últimas
consequências. Desprovida de um “amor materno a priori”, a narradora
está disposta a colocar a vida da “menina” em risco para chantagear a
mãe, para que lhe conte a verdade. Vanessa Passos nos deixa diante
daquelas perguntas sobre inatismo, sobre “características femininas inatas”.
Em uma relação complicada, um trio dependente mutuamente, as três mulheres,
avó, filha, neta, constituem três gerações em busca de algum tipo de reparação.
A mãe da narradora, mulher negra, “adotada” por uma família branca
quando criança para ser empregada doméstica, “quase da família” espera
na filha os estudos que nunca pode cursar. A narradora, filha em busca de um
pai espera que a filha – o bebê – possa ao menos ter um álbum de fotografias. O
bebê espera amor, mas amor é uma herança e um aprendizado, é sempre uma outra pessoa
que, de uma forma ou outra, nos dá ou ensina amor para que repassemos.
Comprometida
em sua história de amor, a narradora ama e odeia sua mãe, a qual responsabiliza
pela falta do pai e por abusos sofridos na infância, assim como lhe odeia os
hábitos religiosos e a falibilidade de um deus que não serve para nada. Por
vezes, a leitura nos leva a duvidar de seu desprezo pela filha, parecendo mais
ser uma força que deseja alcançar do que realmente uma força que sente: “Pouca
coisa sobra da gente depois da maternidade”. Há uma luta interna mostrada
nas cenas que envolvem vínculo e amamentação: “Já era tempo de parar de
mamar, mas a menina continuava agarrada ao peito. No fundo eu gostava”. No
turbilhão que é a chegada de um bebê nessa família pobre e sem qualquer amparo
dos homens – que fogem de suas responsabilidades – vemos uma jovem que precisa
continuar estudando, precisa trabalhar e ganhar o pão de cada dia para as três:
“Falta eu sinto mesmo é de não ter de pensar em ganhar dinheiro o tempo todo”.
Um massacre que nos leva a pensar no conceito de “mãe suficientemente boa”
de Winnicott. Quanto a sociedade e o Estado criam obstáculos para que
uma mãe possa ser “suficientemente boa”? Quando os homens de poder
resolvem representar mulheres que devem criar seus filhos sem qualquer amparo
dizem ser a favor da “família”, de que família estão falando? Onde está
o “pai suficientemente bom”? O mundo mudou muito desde o período
Neolítico, a cultura permitiu um afastamento (até mais do que desejável) da
natureza, mas para o homem que abandona o filho – uma verdadeira tradição – ainda
se utiliza a desculpa de que os “homens saíam para caçar”. Não é a
natureza que determina que uma mãe sozinha tenha que dar conta de criar o filho
“quem pariu Mateus que o embale”, é o machismo, que relega à mulher esse
papel (de gênero) fazendo ser muito “natural” que homens simplesmente se
abstenham de qualquer responsabilidade quanto ao filho que também fizeram.
A filha
primitiva nos leva ao microcosmo de uma mãe na atualidade, cujo
dilema fica muito bem resumido pela escritora espanhola Esther Vivas, no
livro Mamá desobediente, una mirada feminista a la maternidade: “O
ideal materno oscila entre a mãe sacrificada, a serviço da família e das
crianças, e a superwoman capaz de conseguir tudo conciliando trabalho e criação
dos filhos.” Concilia-se e, por vezes, muito mal. Vanessa Passos,
corajosamente nos lembra que não adianta idealizar a maternidade se a
maternagem – a função de ajudar o bebê a vencer o desamparo e se tornar
autônomo – não pode existir. Que a maternidade não está ilesa do contexto socioafetivo,
pois os cuidados físicos com o filho podem existir sem necessariamente ser
investidos de desejo. As mulheres precisam falar sobre a maternidade real, que
inclusive pode ser boa, não a idealizada – desta os homens já falaram, é
somente santa – mas sequer há esse lugar de escuta. A autora nos dá o relato de
uma jovem mãe que reflete sobre o parto como um pesadelo, envolvendo a tão
comum violência obstétrica e a exigência dos padrões de beleza: “pelo menos
tu voltou pro teu corpo de antes”. A grávida que fica, mas não quer ficar,
quer fugir: “Esperei mexer de novo pra dizer a ela que era melhor morrer do
que viver nesse mundo.”
Vanessa
Passos, ao escrever A filha primitiva, utiliza uma
linguagem direta, frases curtas, com uma certa dureza que junta tema e forma. É
um livro que nos mostra como é fácil culpar a mãe, culpar mulheres em um mundo
feito contra elas, mas também mostra o esforço para superar a incomunicabilidade.
Talvez, entre a mãe e a filha, um abraço possa servir como a língua universal
quando o idioma – diga-se materno – falha. Diante do envolvimento com bebês, o
corpo libera ocitocina – o hormônio do amor. Pesquisas recentes
constataram que o envolvimento carinhoso e real com a criança estimula a
produção desse hormônio verificado também em pais adotivos, mães adotivas,
independente de sexo, gênero ou a composição do casal – se há casal. Havendo bebês,
é preciso maternidade e paternidade responsáveis. Deveria ser sempre uma “escolha
livre” ser mãe ou não. As mulheres têm mais o que fazer. E Freud errou: anatomia
não é, necessariamente, destino.
***
“Já
era tempo de parar de mamar, mas a menina continuava agarrada ao peito. No
fundo eu gostava, porque era o único momento em que eu me sentia mãe de
verdade. A menina sugando de dentro de mim a mãe que eu não era.
Pelo
menos tu voltou pro teu corpo de antes, isso é bom. Tem gente que nunca volta.
Parto normal ajuda.
Se
fecho os olhos, ainda escuto os gritos das mulheres parindo no hospital. Tive
de entrar sozinha, minha mãe ficou na recepção. A enfermeira me disse que o pai
era pra ficar lá fora, procedimento dos hospitais públicos, a proibição de
homens nos espaços juntos das outras grávidas. Respondi que a menina não tinha
pai, com o intuito de comovê-la, mas ela me tratou como uma puta que dava pra
qualquer um, por isso a menina não tinha pai e eu não devia nem saber de quem
era a criança. As enfermeiras não têm pena da gente. Talvez porque nunca tenham
parido na vida ou porque já tenham visto partos demais.
Abri
os olhos, a menina aninhada no peito, sugando o bico, umas mordidas de vez em
quando, os dentes nascendo, as estrias saltando na pele.
Tu
vai sentir falta quando ela deixar de mamar? Falta eu sinto mesmo é de não ter
de pensar em ganhar dinheiro o tempo todo, botar comida na mesa e encher o
bucho primeiro pra ter leite pra menina.
Dizem
que quanto mais a bebê mama mais se produz leite, sabia?
Minha
mãe se contentava em falar sozinha. Há muito tempo eu já não dava importância
pro que ela dizia. Eu não via a hora de voltar pra Guaiúba, aquela cidadezinha
no meio do mato, pra dar aula de literatura. Podia ter escolhido dar aula em
Fortaleza, mas queria ficar o mais distante das duas, da minha mãe e da menina,
ir pra um lugar onde ninguém me conhecesse e eu pudesse ser aquilo que eu
inventasse, feito personagem de mim mesma, sem criança, escrevendo sempre que
quisesse e sabendo quem era o meu pai.”
***
A filha
primitiva
Vanessa
Passos
Romance
2021
Edição
Amazon Kindle
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.