por Saulo Machado__
Eles desciam a ladeira correndo,
levantando com os pés o pó vermelho e fino que recheia as encostas daquele
interior tórrido e sem vigor. Sob um mormaço indiferente, as pequenas casas
apareciam na primeira visada que se pode ter quando ao redor o que se tem é uma
vastidão repetindo a cada metro uma secura quase injusta. Feitas de um barro
vermelho, com grandes estacas de madeira de onde brotam as paredes que ora
sustentam um teto de palha, ora um de telhas de barro que protege ali mais do
sol cotidiano do que da chuva rara.
Os meninos, todos eles, três ou
quatro, corriam em direção ao povoado sempre depois de terem ajudado suas mães
a descascarem mandioca por toda a manhã. Era o ápice desses dias que passam sem
nuvens. Quando atingiam as casas, cada um enveredava-se pelos corredores
estreitos e então as brincadeiras começavam.
Jonas, inquieto e sem medo, pulava
as cercas e atirava-se em algum galinheiro no quintal de qualquer casa que ele
sabia conhecer o dono. Samuel, de sobrancelhas grossas e olhar atravessado,
fazia questão de uma sombra que o salvasse dos reflexos dessa terra, e então ia
em direção a qualquer um dos três estabelecimentos que aprovisionam o
necessário àqueles habitantes. Tiago, o mais novo, que só fazia rir ao mínimo
de palavras que qualquer um balbuciasse, tinha sempre a ideia de subir em
alguma das poucas árvores que enfeitavam as ruas (o que o fazia ser achado
primeiro, eternamente). E finalmente, Isaías, que por uma ingenuidade muda, quando não ficava com sua mãe para ajudá-la à
tarde (por espontânea vontade), punha os pés na vila já fechando os olhos,
contando alto os números que só chegavam até vinte. O vinte, então, marcava o
silêncio moroso desta terra onde todos pareciam estar em exílio.
Isaías abria os olhos, o calor
pingando da testa ao queixo, o peito cheio de ar, a visão das casas umas
coladas nas outras, as ruas escorridas senão pelo vento. Passava-lhe pela
cabeça buscar o primeiro de sempre, “o seu ajudante” (como costumavam zombar os
meninos), que certamente estaria trepado em alguma das árvores, segurando um
riso gosmento para o primeiro que lhe aparecesse. Mas, ocasionalmente,
ocorria-lhe o sentimento natural daqueles que vivem tão perto e compartilham da
mesma rotina. Algo que comprimia no peito e fazia-lhe procurar os outros, os
menos óbvios, mas ainda assim evidentes; como Jonas, que estaria em uma das
casas, ou Samuel, nos estabelecimentos.
Isaías, então, recortava estes
poucos corredores numa estratégia simples: no caminho para o bar, igreja ou
mercearia (em busca de Samuel), cerrava os olhos passando pelas portas e
janelas das casas, olhando por cima das cercas dos quintais, nas pontas dos
pés, procurando fazer o mínimo de barulho com seus chinelos de couro seco, a
fim de ver Jonas. O fato é que dificilmente o achava. O céu e a terra, como
dois grandes espelhos que a tudo refletem e iluminam, de nada serviam quando se
precisava olhar para dentro dos poleiros ou das casas. As paredes barrentas
pareciam reter toda luz e calor do mundo, e eram poucos os olhos que podiam entrever
alguma coisa neste contraste sem fim. E era nesse exato contraste de luz e
sombras que Jonas detinha sua vantagem. Na mesmice dessas procuras achava-se
Samuel, deitado em algum banco da igreja, ou atrás de algum balcão do bar ou da
mercearia, que com o susto do achado, dizia: “Merda!” (menos quando encontrado
na igreja, aos olhos do diácono). Irritado, tomava a frente e ia diretamente e
sem pensar em direção às árvores, atravessando a pequena praça quadrada e
gritando: “Desça, Tiago! Desça!”; e era quando se ouvia os soluços de riso do
menino, que descendo dos galhos, admitia sua derrota sem dificuldade. Os três,
sempre os três, sabiam que em maior número, Jonas alguma hora seria visto. É
certo que o cansaço, o suor escorregadio entre as sandálias, o pó vermelho das
ruas fincado nas canelas, o brilho negro das têmporas que pululavam, tudo isso
contribuía para que voltassem à praça quadrada e sentassem cada um em um banco
de madeira.
Seus pés iam e vinham flutuando sob
um cascalho desconhecido que dormia debaixo do banco. Em uma das pontas da
praça, um balanço improvisado de madeira e barro (como tudo nesse povoado), que
às vezes o vento balançava e então se ouvia dois, três rangidos finos do atrito
das correntes se espalhando pelos céus. Na pacatez desta praça, via-se as casas
miúdas entrelaçando-se sem conhecer realmente o que demarca uma ou outra, como
um extenso casarão que por dentro reparte-se em quartos compartilhados,
cozinhas trincadas e marcadas pelo brasido da lenha e salas onde qualquer estante
duradoura guarda uma pequena TV.
Ofegantes e sem saber do tempo,
Tiago soluçava de rir, Isaías mantinha os olhos cerrados na obrigação dos
contrastes de Jonas, e Samuel, que olhando para Tiago com sua mão na boca e
nariz escorrendo, dizia: “Pare de rir! Ele vai saber onde estamos!”. E assim,
debaixo do íntimo sol de uma ou duas da tarde, os três abatiam-se pelo
tranquilo desespero que tudo acerta nos intervalos das brincadeiras e que faz
da serenidade um idioma possível. Sim, o leve desespero da pausa do brincar; o
único possível, este quando a correria acaba e o suor pinga, com os corações a
mil, como deuses que descansam e porventura se esquecem que são deuses.
Era quando o barulho das galinhas
de algum poleiro atrapalhava os rangidos de aço do balanço. Os três levantavam
as cabeças, procurando por Jonas, que acabava de se denunciar. E então corriam
para o quintal do acontecido, Tiago ainda com a mão na boca e rindo, Samuel
arrebatado, com os olhos fixos, e Isaías animado e prevendo vitória. “Aaahh!”, gritava
Jonas enraivado: “Galinhas! Galinhas!”. Tiago caía-se no chão, agora em
gargalhadas que mal o deixavam respirar, com os fluidos da boca e do nariz
escorrendo pescoço abaixo, caindo na areia vermelha, enquanto os outros dois
deixavam-se rir também, agradecendo aos bichos. Via-se no rosto de Jonas sua
irritação encolher e virar indiferença. Isaías e Samuel, satisfeitos,
empurravam levemente o colega achado e, com os braços soltos, voltavam a
caminhar por onde a areia fosse menos quente.
Eles sabiam que os poucos minutos
em que se divertiam eram suficientes para tornar suas vidas uma coisa boa.
Passavam na mercearia, pediam um copo de água, e caminhavam de volta em direção
à ladeira que tinham descido ao meio-dia.
A estrada dava caminho a duas
ladeiras pouco largas onde um sarçal baixo e inconstante protegia os pés das
cercas. Os chinelos de couro seco dos meninos escorregavam por um silêncio
conhecido e difuso que, às vezes, o canto de um concriz ou rouxinol
ornamentava. A casa de farinha aparecia na bifurcação logo após a segunda
ladeira, e era quando se olhavam intuindo uma corrida à cancela e ao portão de
aço descascado. Era o riso solto de Tiago que alertava as mães da chegada de
seus filhos. Estava na hora de retirar as mandiocas repousadas nas bacias
d’água e trazê-las ao balcão de madeira onde seriam empurradas ao moedor. Os
meninos (exceto Tiago, pois era muito pequeno e ainda aprendia), faziam o
transporte com o carrinho de mão enquanto suas mães moíam a mandioca. Quando
acabavam as raízes nas bacias, trocava-se a água dos dias pela nova da cisterna
— o que todos olhavam com grande angústia, aquela água se perdendo na terra.
Depois, pegavam novamente o carrinho de mão para trazer toda a nova montanha de
mandioca descascada durante o dia e levá-las às águas, onde repousariam por
três dias. Suas mães, que eram quase metade das mulheres daquele povo,
encobertas por vestidos retalhados e tecidos à mão, ajudavam em todas as etapas
os seus filhos, acompanhando-os com as mãos argilosas de raízes e com olhares
imprecisos. Tudo era feito do mesmo jeito, todos os dias. E os meninos só
sabiam de seus pais à noite, quando chegavam dos trabalhos diversos de força
bruta que teriam de aprender dali a alguns anos. Esses homens, mulheres e
crianças que a tudo já tinham entendido, deixavam-se passar inaugurando o tempo
sob o signo da miséria que a tudo esquece, preenchidos por uma terra vermelha
como Marte.
Quando o sol caía e o silêncio aprofundava, Tiago, com seu pequeno corpo negro marcado, sentava-se no alto da cancela, mordendo um pedaço da camisa, e observava a inquietação da limpeza da casa, do fechamento das janelas e da preparação dos sacos de farinha a serem levados. Ele acompanhava aquele ritual quase religioso rindo a cada careta que Samuel ou Jonas lhe oferecia, rindo sem tempo para nostalgia ou esperança, sorriso que habita somente a terra e que zomba do que é profundo.
* conto publicado na obra “O Jogo das Margaridas” (Editora Mormaço, 2021).
Saulo Machado é graduando de psicologia e estudante de psicanálise. Escreveu “O Jogo das Margaridas” (Editora Mormaço, 2021).