por Alexsandro Souto Maior
A cada
cair de tarde, Zefa Rosa subia a ladeira torta, carregando galhos secos e um
tanto de cansaço e de sorriso. Ela morava na Curva das Viúvas. Um sítio pouco habitado e pouco visitado, por
ser tão alto, tão perto de Deus como ela mesma respondia, mecanicamente, a
todos os curiosos. Diziam que Zefa não envelhecia, eternizava-se. Aquela figura
delgada não secava. Mulher de poucas palavras desde que perdeu o seu esposo. Só
os mais velhos da região conheceram o marido. Mas era coisa de muito tempo.
Tempo de se perder de vista. Conservava sempre os mesmo hábitos. O fogo na
cozinha era só o de queimar lenhas. Vivia do que plantava no seu quintal e da
caridade das pessoas da redondeza. Quando perguntavam a Zefa Rosa o porquê de
ela não se casar novamente, ela era certeira. “Eu me basto sozinha”. Na Curva
das Viúvas, ela não estava só. De quando em quando, proseava história curta com
Dona Matina e Irmã Alva. Esta carregava no nome a sua passagem pelo convento.
Mesmo depois de largar o convento e se amalgamar com Teodoro, continuava a carregar
seu nome com a leveza e o peso do que se é.
Não
sabiam os citadinos que os galhos que se alongavam no corpo magro de Zefa eram
também para as suas vizinhas. No amor, também se põe sacrifício. Dona Matina
não conseguia pôr o pé no mundo. Ela se abandonava ali. Não teve filhos assim
como as demais e seu marido morreu muito cedo. Nos últimos anos, só colocava a
cabeça na janela para prosear. Matina tinha obesidade mórbida. Zefa ajudava a
amiga no sempre, fazendo algumas tarefas domésticas e escutando as lamúrias de
Matina. Irmã Alva era presa à reza. Sua pré-história ninguém sabia, só se
adivinhava.
Como em
fábula antiga, Zefa Rosa, em tempo de sol, trabalhava dobrado pelas três. Tudo
isso para se aquietar em tempo de chuva. Temia a tempestade de fora mais do que
a de dentro. Quando o inverno forte
chegou, cada uma estava no seu dentro, convivendo com todo tipo de memória:
corpo, casa, trabalho, dias de festa e de tristeza. A solidão tinha raízes por
ali. As visitas de Zefa à casa de cada vizinha era bem espaçada. Um grande
hiato entre os dias. A ausência era sempre recompensada com os bolinhos de
chuva da Irmã Alva e com o chá feito por Zefa Rosa. Encontravam-se na casa de
Dona Matina. A rainha dos quitutes.
A
última chuva que caíra esticou os dias. Em dia de nublar apenas, combinaram de
visitar Dona Matina. Afinal, ela não colocava a cara na janela há alguns dias.
Ao chegar à casa de Matina. Encontraram a porta entreaberta. Adentraram sem
fazer barulho e para a surpresa ser muita. Matina dormia no sofá. Dormia
profundamente. Irmã Alva se pôs a rezar, Zefa Rosa tocou o pulso de Matina. Não
havia nada mais pulsando. A tarde ficou pálida, quase sem vida. Mandaram vir
ambulância, bombeiro, alguém para fazer o milagre que fosse. De repente, a
Curva das Viúvas se enfunou de gente. Era enredo irremediável. A tarde pálida
se despedia de Dona Matina.
Depois
do ocorrido, não se viu mais Zefa descendo ou subindo ladeira. Irmã Alva pôs a
casa à venda e partiu para viver em lugar longe. Estava triste por demais. Os
dias não seriam mais os mesmos. De Zefa
Rosa, nunca mais se ouviu falar. Só viram que ela era a mais triste. Nem em
velório apareceu. Foi um inverno doído demais. Alguns diziam que Zefa havia
morrido por fora e por dentro. Outros replicavam o pouco dito “era coisa de
amor somente”. O fato é que a casa dela continuava fechada, quase coberta por
juncos, trepadeiras e matos. Daquela mulher, não se sabia de nenhum paradeiro.
Hoje, ainda perambula em minha cabeça a sentença que Zefa Rosa me disse no
último verão: “O que cada um quer é cuidado!”.
SOUTO MAIOR, Alexsandro. Inglórios. Recife:
Editora Villa Lux, 2021.