por João Gomes e Taciana Oliveira__
No aniversário da Mirada entrevistamos a poeta mineira Adriane Garcia: Eu nunca me deixo esquecer: sou uma trabalhadora e vim da classe trabalhadora.
1 - Conta pra gente
como funcionou a tua metodologia de trabalho para a concepção de Estive no
Fim do Mundo e lembrei de você, (Editora Peirópolis).
Já há uns três anos,
mais ou menos por volta de 2018, eu vinha escrevendo sobre alguns aspectos
ambientais que envolvem a degradação do planeta. As imagens que retratam a
beleza da Terra sempre me comoveram muito, eu realmente me emociono com a
beleza desta casa em que moramos coletivamente. Muitos sentimentos se
movimentam em mim quando penso em nós, como raça, humanidade, e nossa relação
péssima com os outros seres deste lugar. Agora estamos em uma época de
ultimato, ou mudamos nossa maneira de viver aqui ou a humanidade caminha para a
extinção, mas antes disso, haverá um sofrimento muito grande, pois Gaia é um
organismo vivo, que como todo organismo vivo, também luta para permanecer viva.
Assim, a metodologia, se é que podemos chamar assim o construir um livro de
poemas, foi seguir um afeto de amor e um lamento, e depois trabalhar o poema
como artefato, como algo que deve ultrapassar o tema e se fazer linguagem
poética, e aí já não é mais o que se diz, mas como se diz, e isso é técnica.
2 - Em seus livros há sempre a escolha de um tema para a construção de uma narrativa poética, como você apresentaria sua obra mais recente?
É um conjunto de
poemas que olha para fora de mim, olha para a minha casa, a nossa casa. É um
livro que pede cuidado com a vida animal, vegetal (e por que não mineral, já
que a Terra é Água?), dando a entender que não crê que este sistema capitalista
fará isso em momento algum. Não é um livro de esperança, é um livro de
constatações. Como não creio em vida após a morte, como creio que essa vida é
única (e é a única), é também um poema de adeus, porque um dia deixarei essa
casa maravilhosa, tão violentada pela humanidade, e isso coincidirá com a minha
morte.
3 - De que forma a
pandemia e o cenário político do país influenciaram na sua produção nos últimos
três anos?
De uma forma
cotidiana, atroz, urgente. Escrevi Eva-proto-poeta (Caos & Letras)
e A bandeja de Salomé (inédito) como uma reação a essa tomada assombrosa
de poder pelos fundamentalistas religiosos neste país. É assustador, espero que
todos estejam vendo, porque é preciso ver. Eles estão entrando em todos os
organismos do país e logo poderão ser uma metástase. Este senhor que ocupa hoje
a presidência, cujo nome não gosto de escrever, porque suja tudo, representa o que
há de mais retrógado no Brasil. Representa a escravidão, o latifúndio, a
misoginia, o machismo, o ódio de classe, e daí todos os derivados disso: sua
necropolítica, sua homofobia, seu racismo, seu método de destruir todas as
instituições de dentro delas, nomeando para geri-las quem as odeia. Tudo
travestido de patriotismo, proteção à família, deus acima de tudo. Agora
começam a escalada de encher o STF com ministros evangélicos. De tudo que
aconteceu até agora, a (in) gestão da pandemia do coronavírus, com milhares de
mortes, e essas indicações para o STF são as coisas mais graves, porque elas
não podem ser desfeitas em governo nenhum. Os mortos já estão mortos. Ministros
que usarão a Bíblia ao invés da Constituição ficarão até se aposentar, votarão
contra todas as tentativas de fazer uma sociedade mais inclusiva, porque o
fundamentalismo religioso é excludente e autoritário. A política ambiental
deste governo é, propositalmente, desastrosa. O plano é “acabar com isso daí”,
os povos originários, porque lutam pelas florestas e são um empecilho para o
agronegócio. Este senhor que está no Planalto é destrutivo e representa os
destrutivos como ele. Grandes perversos. Para meu livro Estive no fim do mundo
e me lembrei de você escrevi ao final:
Segundo a ONG Global Witness em seu relatório anual de 2020, o
Brasil é o terceiro país mais letal para os defensores do meio-ambiente; no
atual governo brasileiro de extrema-direita, os crimes ambientais e contra
ambientalistas têm se agravado. Assim, dedico este livro para todas as pessoas
que se atrevem a fazer ativismo ambiental no Brasil.
4 - Você contribui
regularmente com a publicação de resenhas para revista Mirada e no seu blog “Os
livros que eu li”, destacando nomes da cena literária nacional e
internacional. Como você percebe a participação expressiva de novas autoras e
editoras independentes nos últimos anos?
Sim, leio bastante a produção brasileira atual,
principalmente, e acho importante divulgá-la. Ganho muito lendo, aprendo muito
com minhas contemporâneas e meus contemporâneos. Quem escreve tem que
constantemente ler, nunca se para de aprender a escrever, e aprender a escrever
é sobretudo ler. Claro que diante do que se produz leio pouco, porque a
produção é enorme e é humanamente impossível dar conta, mas tento acompanhar.
Certamente não haveria essa oferta sem as pequenas
editoras. Elas publicam ouro, é só saber procurar. E saber procurar também se
aprende lendo. As mulheres escritoras são uma efervescência e vieram para
ficar. Estamos naquele momento em que as sementes plantadas a duríssimas penas
por nossas antecessoras floresceram. Temos que sempre nos lembrar de oferecer
essas flores a elas.
5 - No seu poema “Tralhas
de tanto afeto”, você nos transporta para um tempo-espaço entre a memória e
um futuro que agoniza. Alguns dos seus leitores poderão se conectar com
elementos da sua ancestralidade a partir da leitura de Estive no Fim do Mundo e me lembrei de você?
Creio que sim. Lá
estão os gnus e a força africana que me guia. É a força de minha mãe negra,
empregada doméstica, aos 12 anos, que me guia; é a força de minha tia, negra,
manicure, que me guia; é a força de minha avó negra, catadora de papel, que me
guia; é a força de minha bisavó e de toda a minha ancestralidade apagada como
história que tento refazer escrevendo. Eu nunca me deixo esquecer: sou uma
trabalhadora e vim da classe trabalhadora. Algo da escrita me leva lá no navio
terrível que as trouxe, mas também me lembra o fato de que elas sobreviveram
contra tudo e contra todos, e eu estou aqui, com as minhas tralhas de tanto
afeto.
6 - Recentemente
Fábulas para adulto perder o sono foi
lançado como ebook, você pretende aderir ao formato para os trabalhos futuros?
Quando se inicia a pré-venda de Estive no Fim do Mundo e me lembrei de você?
A venda do Estive
no fim do mundo e me lembrei de você já está disponível no site da editora
Peirópolis, coleção Madrinha Lua. Sim, o Fábulas pode ser
encontrado em papel na editora Confraria do Vento e em e-book pela
editora Camino Editorial.
Eu gosto de ler tanto livros em papel quanto em ecrã. Gosto de tudo que possibilita que os livros cheguem a mais pessoas. O escritor que publica quer ser lido, e quer ser lido pelo maior número possível de pessoas. Quem diz o contrário está mentindo. É como aquele escritor que se inscreve em um prêmio e, tendo perdido, diz que não gosta de prêmios, que não queria ganhar. Isso não faz o menor sentido. Quero ser lida pelo maior número possível de leitoras e leitores, se isso pode ser alcançado também com o e-book, quero também o e-book. Sei que entre querer e conseguir há um abismo, e como não sou coach e sim uma cidadã que sabe da falácia da meritocracia, não creio na máxima querer é poder e conseguir (risos), mas ainda assim, é o que quero.
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Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020.
João Gomes (Recife/1996) é editor da revista literária online gratuita Vida Secreta. Em antologias impressas, está na “Granja” (São Paulo, 2012), “Sub-21” (Recife, 2013), “Capibaribe Vivo” (Recife, 2015), “Estados em Poesia” (Recife, 2016), “Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv/aids” (Rio de Janeiro, 2018) e “No entanto: dissonâncias”, Paulista/PE, 2019. É colaborador da revista Mirada (miradajanela.com), espaço onde entrevista escritores, resenha obras literárias, publica poemas e crônicas inéditas.
Taciana Oliveira
– Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta
e comunicóloga. I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music
draws me in…