por
Adriane Garcia__
Lança
chamas, de Regina Azevedo, começa a nos chamar pela
capa, no bonito projeto gráfico de Gabriela Araujo. É lá na página 65
que a cor roxa não nos passa desapercebida: “carregar um roxo/ na pele”.
Cor de hematoma, caminhando para o lilás, um espectro que irá da dor para a
alegria, fazendo desta uma arma para resistir. Integrante da coleção Biblioteca
Madrinha Lua, editora Peirópolis, o livro de Regina Azevedo possui
quatro partes: Capim, Mar aberto, Multidão e A poeta. Chama a
atenção a pouca idade da autora – nesta data com 22 anos – e a seriedade com
que trabalha sua poesia desde a adolescência. Neste sentido, faz-se muito
coerente a escolha de um livro de Regina Azevedo para uma coleção cuja
homenageada, a poeta Henriqueta Lisboa, via na poesia não somente um
fazer artístico, mas uma profissão de fé. Regina Azevedo é também uma
militante pela poesia entre jovens de sua cidade.
Lança
chamas, sem o hífen, aproveita-se de mais sentidos. É tanto o
substantivo lança-chamas quanto um imperativo, um convite. É também uma
constatação sobre o sujeito que lança chamas, no caso, a poeta: “porque não
se responde/ um revólver// escrevo como quem lança chamas”. Fogo implícito,
esse objeto poético por excelência, que quase nunca falta nas reflexões sobre
memória – pois é símbolo para o avivar das lembranças e para o esquecimento –
perpassa a poesia de Lança chamas para reviver a infância, a família, os
avós, os tios, o letramento e a alfabetização, para iluminar o amor – que é
chama – e a política, que tantas vezes gostaríamos de destruir para construir
uma outra, que nos permitisse mais que um mundo cinza. Lança chamas é
também o fogo da juventude a que Regina Azevedo nos convida; convite que
só poderia ser feito por um eu poético que se declara jovem, pois a juventude
conserva o motor das rebeliões e a sua indignação é a nossa.
Com
versos na maioria das vezes curtos, livres, usando o mínimo de pontuação e sem as
letras maiúsculas, Regina Azevedo constrói uma poesia limpa e objetiva,
sem qualquer intenção de ornamento, fiel à proposta temática dos poemas. É
exatamente por isso que pode nos surpreender com um verso que parece ter saído,
de repente, de uma associação livre. É justamente por saber dosar as figuras de
linguagem, que Regina Azevedo consegue dar “rasteiras” em quem está
lendo. E é bom cair nas armadilhas que transformam por exemplo “um homem de
gravata” em “um homem de bravata”. É bom ler um livro que faz a dura
e necessária crítica sociopolítica, que denuncia o machismo e os males do
patriarcado. E é bom que este mesmo livro contemple o que é íntimo em nós: a
passagem do tempo, a beleza do cotidiano, o sexo, os nossos desejos e perdas, evocando
também a vitalidade, a leveza.
brasil
2018
jamais
esquecer
de
beijar a sua boca
antes
de sair de casa
porque
isso aqui é brasil, 2018,
e os
cidadãos de bem
arma em
punho, bandeira aberta
nos
querem mudos,
amordaçados
escorraçados
do país
a arma
da família
mira no
próprio sangue
a gente
nunca sabe
se vai
voltar a se ver
não dá
pra saber
quem
será o próximo
moa,
marielle,
eu ou
você
no
brasil de 2018,
lutar e
beijar
jamais
esquecer
festejo
ao fogo
só por
um segundo
sob teu
peito
o
farfalhar do outono
e o que
você fazia
em
festejo ao fogo
a ponta
dos dedos
ao
relento
traquejo
singular da labareda
misto
de calmaria e lampejo
numa
dança descabelada
a
língua pronta para o surgimento
da
manhã
o
espírito de cavalo colorido
no ato
de trocar os óculos com você
e te
olhar de baixo
o
minério que dorme na pele
o
desafio que doma o segundo
a ginga
que derrete as ondas
cheiro
tônico diante do espelho
o
rugido e o anúncio
do
tropeço no ritual:
um
orgasmo estupendo
anestesia
contra as bombas
de
efeito moral
***
Lança chamas
Regina
Azevedo
Poesia
Ed.
Peirópolis
2021
Regina Azevedo nasceu em Natal (RN), em 2000, e é poeta. Publicou alguns livros de poemas, entre eles Pirueta (2017, selo doburro), Vermelho fogo (2021, independente) e Carcaça (2021, Munganga Edições). Integra a antologia As 29 poetas hoje (2021, Companhia das Letras), organizada por Heloisa Buarque de Hollanda. (Foto: Carol Macedo)
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).