O sapo e o escorpião, Wellington Amâncio da Silva

 por Wellington Amâncio da Silva__


Fotografia: Lukas Hron



Chuvas torrenciais no município de Bedelém. Uma mancha de lama e de lodo riscava o pé das paredes das casas do lugar. Milharal inundado, ovelhas encharcadas berravam para o céu, barro fundo nas estradas e caminhões atolados. Onde este lugar!? No Cerne do Sertão.


De dezembro a janeiro, do verão de fogo ao frio de águas sem fim, foi o que houve, inundações. No sábado as nuvens se fecharam muito cinzas e carregadas, e um trovão enorme fez despencar toda a água do mundo. Aguaceiros.


A torrente escurecida avançou pelos bairros e avenidas até à Prefeitura e à Câmara, depois atingiu a todos, sem dó, sujando dentro de nossas casas. Logo as pessoas se aperrearam, sobretudo os pobrezinhos. João se perguntava, “Qual o propósito de tanto prejuízo, de tanta lama?”.


Tentando esquecer esse caos eu mesmo resolvi caminhar por aí, sem destino, desejando sentir o cheiro da terra molhada e contemplar a paisagem gris ao meu redor. Todavia, ao longe vi um charco muito comprido de água e lama e avistei Manarii desesperado, o escorpião, encimado num morrinho enxuto circundado de água para todos os lados. Ele clamava por ajuda, lágrimas nos olhos e rosto sofrido. Ninguém o ouvia, coitado...


Minutos depois, Alfredinho, o sapo cururu, se aproximou todo prestativo.


— Quem pede socorro!?, quem pede socorro!? — disse o sapo.


— Eu... eu aqui. Por favor, me ajude... — gritou Manarii, o escorpião.


— Espere... tenha calma... Estou indo ajudar...


Alfredinho, o sapo, tomou um baita susto quando se aproximou o suficiente para identificar quem pedia socorro, o escorpião.


“Deixo morrer essa besta-fera?” — pensou o sapo, mas, eis que a sua educação de cidadão honesto, as suas crenças, os conselhos dos seus pais sobre ajudar o próximo perseveraram. Com muito cuidado, se dirigiu ao escorpião, que por sua vez se justificou:


— Alfredinho, meu amigo. Me escute bem, por favor. Eu me redimi, acredite em mim! Agora sou outra pessoa. Mudei totalmente, pode confiar. Não sou mais hostil. Nesta vida nada ganha quem faz o mal, por isso eu mudei... Se aproxime um pouco mais e veja com seus próprios olhos como estou mudado... não faço mal a ninguém mais, nem mesmo as formiguinhas...


 Alfredinho, o sapo, hesitou muito, mas, quis dar-lhe mais uma chance, pois aprendeu em casa a ter esperança na mudança de caráter das pessoas. Pensou que seria bom que todos o vissem carregando o escorpião sobre as coisas e assim o fez.


— Vou te dar só mais uma chance de você provar que agora é uma boa pessoa. — disse o sapo — Observe que um mundo melhor se faz com boas ações e todos podem mudar para melhor...


Logo o escorpião velejava calmamente sobre as costas do sapo, que aplaudido se sentia maravilhosamente bem. Uma multidão de animaizinhos gritava em coro: “Em você eu votaria até para presidente, nobre Alfredinho! Parabéns!”.


— Nem para vereador eu votaria! — disse um grilo pessimista — isso aí é fingimento puro... quem já viu sapo se misturar com escorpião? Essa chapa não daria certo, seria um fiasco...


— Você precisa acreditar num mundo melhor, seu grilo... — aconselhou a senhora Cascavel.


— Realmente a cena é belamente cinematográfica! — disse a raposa velha.


Já o escorpião achava bom o feito do sapo e da plateia, porém, ninguém na Terra seria capaz de sondar seus pensamentos...


Ah, a boa ação... Que coisa linda! O sapo de tão feliz, outrora um bicho sério, sorri com seus lábios finos e côncavos. E logo ao encostar-se às margens de terra firme o escorpião salta para o seco. Na velocidade de um piscar de olhos empurra o ferrão venenoso nas costas do sapo Alfredinho, que envergado e se contorcendo de dor questiona em voz vacilante:


— Mas você me disse que se redimiu? Que agora tornou-se outra pessoa? Que deixou de lado as hostilidades?


O escorpião gargalhando disse:


— Alfredinho, seu tolo... esta é a minha natureza. Já ouviu falar que escorpião mudasse de caráter? Eu sou assim e nisto me dou bem. Você perdeu! Se vire, seu tolo!


Já o pôr-do-sol se observava ao longe. Alfredinho ainda chorava aos prantos gemendo de imensa dor. Era veneno demais em suas coisas, era dor para semanas e meses, era dor para mais de quatro anos, coitado.


Do Céu a Justiça o observava em silêncio, sim, em silêncio o observava...

 

 



Wellington Amâncio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. É músico multi-instrumentista e produtor musical. Publicou-se: Ontologia e Linguagem (2015), Pensar a Indigência com Michel Foucault (2018), Gumbrecht leitor de Heidegger (2019) e Conceito de modo de convivência (2018), além de dezenas de artigos científicos. Em literatura publicou-se: Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) e Elegia da Imperfeição (2001). Editor das Edições Parresia. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca.