por Luiz Henrique Gurgel___
“...o herpes é um pouco
como o remorso,
fica adormecido dentro
de nós e um belo dia acorda
e ataca-nos, e depois
volta a adormecer
porque nós conseguimos
amansá-lo,
mas fica sempre dentro
de nós,
não há nada a fazer
contra o remorso.”
Antonio Tabucchi, Requiem,
uma alucinação
Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada. Lá embaixo o chiado de pneus no asfalto. Largou o
livro, levantou-se e foi até a janela observar o movimento na rua, jovens se
esgueirando nas beiras e gente encolhida na fila do cinema.
Vontade de sair,
agasalhou-se rapidamente, casaco de golas altas, um cachecol que cobria o nariz
e um chapéu de feltro cinza, elegante, para proteger a calva. Nunca fora de
usar chapéu, mas naquela tarde, quando voltava de uma seção de autógrafos na
Bienal do Livro, deu vontade de procurar a loja do velho francês que lembrava
existir quarteirões abaixo, em direção ao centro da cidade. Gostou do modelo
anos 30, de feltro, o velho disse chamar-se
Borsolino ou Fedora, famoso na cabeça de astros de filme noir, Humprey Bogart e
Spencer Tracy, se ainda há quem se lembre deles. Mirou-se no espelho do
elevador, a aba do chapéu cobrindo os olhos, nem sua mãe o reconheceria. No
térreo baixou o cachecol do nariz, não queria chamar atenção, muito menos que
imaginassem que se escondia.
Descia a rua, encolhido,
mãos no casaco, contemplava o que podia com o chuvisco e o vento frio.
Tirando a rápida
passagem pela loja do francês naquela tarde, de táxi, há quase trinta anos não
caminhava por ali. Continuou descendo, sentiu uma pontinha de inveja daqueles
jovens, das meninas com cabelos azuis, amarelos, cor de laranja. No trecho das
boates - ou casas noturnas, como dizem hoje - havia menos neon e bem menos
boates, mas ainda havia moças em trajes mínimos, encolhidas de frio, nas
portas, junto de leões de chácara solícitos, primeiro drink grátis. Deu vontade
de esticar até o Piolin, onde ia com amigos de teatro, comida boa e barata,
restaurante que lhe fora apresentado por uma namorada atriz, oito anos mais
velha que ele, conhecera no curso de
Letras. Ela gostou do calouro, 20 anos, recém-chegado do interior de Minas, e o arrastava até o porão do restaurante
para beijos e agarros, querendo entrar com ele no banheiro masculino, coisa que
nunca deixou, morria de medo. Não deve ter
durado um ano, pouco mais, talvez, foi a única namorada que teve em São Paulo e
uma mão no peito, quase a barrar caminho, interrompeu o devaneio ofertando um
folheto colorido. Era um sujeito grande, silencioso e mal encarado. Pegou o
folheto de susto, cara de espantado, não havia foto de mulheres seminuas,
apenas uma taça de champanhe no centro, texto em português, inglês e espanhol,
falando em discrição, sem música alta, ideal para desfrutar de boa e seleta
companhia, universitárias. O velho papo. Diminuiu o passo, desceu mais alguns
metros fingindo ler o folheto. Voltou-se e viu que o sujeito o observava, quase
a chamá-lo. Era um daqueles predinhos antigos, talvez do anos 50, com dois
andares. O grandalhão ensaiou o sorriso, gentileza de gerente de banco, e
estendeu a mão na direção da escada de entrada.
Subiu devagar, sem graça
e tímido, olhando a luz fraca que vinha do fim da escada íngreme. Quase tropeça
nos degraus gastos, agarrou-se ao corrimão pegajoso. Era a primeira vez que
entrava num lugar daqueles, que fascinava e ao mesmo tempo punha medo desde que
chegara à cidade para fazer a Universidade de São Paulo. Mal iluminado, como
devia ser, com um palquinho no fundo do salão. À direita, um balcão e muitas
bebidas na estante de vidro colorida e com espelho.
Receou pelos destilados,
pediu cerveja. Mistura de sensações, quase tremia. Havia três outros homens,
cada um numa mesa. Duas moças bebiam com um, outra com outro e o terceiro bebia
sozinho, como se esperasse alguém ou só gostasse de espiar mesmo. O barman
estendeu a comanda e perguntou se queria algo para comer. Fique à vontade,
se quiser companhia... . Viu-se no espelho e achou estranha a própria figura
encapotada e de chapéu. Descobriu, atrás de si, em cantos obscuros, outras três
moças, olhares fixos nele. Desviou os olhos do espelho, achou uma salvadora
cumbuquinha com amendoim no balcão. Foi aí que na volta ao espelho deu de cara
com ela, uma aparição, belíssima, sorridente, alta – incrivelmente alta, lhe
pareceu - simpatia e delicadeza nos gestos, no jeito de falar, olhar, sem
extravagâncias nem caras e bocas, rápidos segundos de contemplação. Vestia
calça jeans, camisa branca de tecido muito fino, mangas arregaçadas no punho.
Os botões da camisa entreabertos, apenas a apresentar os seios e a pele negra e
lisa num sutiã branco. Lembrou-se de uma princesa etíope, namíbia ou sabe-se lá
de que pedaço da África, enfim, que vira numa velha revista americana, folheada
num sebo. Ela conversava com o barman, a centímetros dele, como se não o
tivesse notado.
*
Olhava as paredes,
acarpetadas até o teto, cheiro de mofo misturado ao perfume de lavanda barata
de quarto de encontros. Presumiu, pois nunca havia estado num lugar assim e
sentia-se entre feliz, envergonhado e culpado. Principalmente os dois últimos.
Lembrou-se de Laura e imediatamente, num espasmo que durou fração de segundo,
as pernas estremeceram, doloridas, sensação de pecado. Os namoros eram no quarto dele, quando não tinha ninguém
em casa. Casaram-se em menos de dois anos, incluindo seis meses de noivado.
Depois filhos, a vida dura de professor até ganhar um concurso importante de
histórias infantis em Minas, algum sucesso, depois outros livros infantis,
palestras, viagens, um livro de contos e mais infantis – passou dos trinta, com
doze deles lançados no exterior - mais prêmios, feiras, festas e bienais
literárias, adaptações para o teatro, outros dois livros de contos. Só um
romance, mal sucedido.
Os odores sumiram quando
se virou para ela, parecia velar por ele e começou a sorrir. Aproximou o rosto
de seu pescoço, o perfume suave não escondia o agradável cheiro do corpo.
Sentiu-se bem, mas sem entender o próprio contentamento, antes estranhou. Saiu
de lá confuso, ainda feliz e um tanto vexado. Jamais havia feito aquilo com uma
garota de programa, sempre ouvira falar que elas não eram muito pacientes.
Passou a aceitar todos
os convites de eventos em São Paulo. Até palestras gratuitas em escolas de
periferia. Sua agente estranhou. Vou, claro que vou. É justo me apresentar para
quem me quer ouvir, para quem goste das minhas histórias, esteja em Guaianazes
ou em Pinheiros.
Shirlei tinha 27 anos.
Delicada, sorria com facilidade, simpática, voz ligeiramente anasalada. Durante
o dia, demonstradora de uma marca de pasta de dentes em supermercados. À noite,
uma ou duas vezes por semana, rua Augusta.
O escritor morava com a
mulher em um sítio, numa das regiões serranas mais belas de Minas. Aos 56 anos,
três filhos criados, dois deles morando no exterior, tinha a vida sossegada com
o que rendiam seus livros, palestras, prêmios, obras indicadas pelo Ministério
da Educação, adaptações para o teatro.
Ficaram amigos, teve
medo de se apaixonar. Dava jeito de vir ao menos duas vezes a São Paulo, cada
mês. Ela era inteligente e nunca falava de sua vida particular. A intimidade
crescia e um dia ela criou coragem, já sabendo quem ele era, e lhe deu um
envelope. Meio envergonhada, sem graça, sorrindo como uma menina tímida, o que
a deixava ainda mais bonita. Pediu que só abrisse o envelope no avião. Não é
nada demais, disse. Leia depois, por favor, diga o que acha. Prometeu, imaginou
o que seria, beijou-lhe o rosto e saiu.
Estava atrasado para o
último voo daquela noite. Colocou o envelope no meio de um livro.
*
Percorria a estante
quando reparou uma ponta de papel saindo de um livro. Coincidências não
existem, lembrou do clichê. Há mais de dois meses não ia a São Paulo. Sim, tinha
saudades, estivera no exterior, até pensou em mandar postais, mas para onde?
Eram oito
folhas datilografadas em máquina de escrever, um papel fino como dos antigos
papéis de carta. Gostou, ninguém mais escreve assim. Macio, agradável ao tato,
buscou algum odor dela. Leu e ficou surpreso, sentou-se e releu e releu, várias
vezes, alguns versos sussurrando, eram femininos, fortes. Constrangeu-se, tanto
tempo esquecido no livro.
Arranjou a viagem,
chegou ao hotel no meio da tarde e já desceu a rua. A casa só abria mesmo no
começo da noite, ficou no bar em frente. A única coisa que tinha dela era um
e-mail, para o qual nunca escrevera.
O leão-de-chácara não
tinha notícia, curto e grosso, não sabia de nada. O barman só disse que fazia
tempo ela não aparecia. Não podia ajudar, ninguém tinha contato, nem o gerente,
ela vinha quando queria. Foi pagar a cerveja, cinco notas bem graúdas na mão, e
encarou o sujeito. Talvez a Cleidinha, lembrou o barman, pegando o dinheiro.
Escreva seu número aqui e eu passo para ela.
Deixou o guardanapo com
o número e saiu sem esperança.
Subia a rua devagar e
aborrecido quando o celular vibrou no bolso. Mensagem de número desconhecido
que só trazia um outro número de celular. Apressou o passo até o hotel e do
quarto ligou, chamou até cair. Ligou de novo, voz de mulher, Quem é?
Sentiu frio, gaguejou.
Oi, eu procuro a Shirlei. O silêncio foi longo.
Alô? Oi? Este celular é
da Shirlei?
Quem é você? Veio a
pergunta.
Eu sou um amigo dela,
Hélio, inventou.
Amigo? Não está sabendo?
O quê?
Pausa até ouvir de uma
vez como se a voz quisesse aliviar o peso da informação, Ela faleceu. O
silêncio longo foi dele. Destravou devagar o nó na garganta. Como?
Qual seu nome mesmo?
Você é o cara de Minas?
*
O nome veio de um filme
brasileiro antigo que assistiu na TV, numa madrugada. Viu o filme sonolenta e
lembrava dos seios da atriz loira, que se pareciam com os seus, só que brancos.
Dois homens entram numa boate em que a loira está cantando na penumbra cercada
de dançarinos musculosos vestidos só de tanga: “Onde anda, Shirlei Sombra? Em
Naishpur ou Babilônia?”. Ela não fazia ideia
onde ficava a primeira. A segunda lhe era familiar desde criança, nas prédicas
do pastor e nos trechos do profeta Daniel que a tia, que a criara, lia para
ela. Mas os nomes soavam exóticos, ela imaginava algo oriental e sentia vontade
de girar o mundo. Paris, Roma, Nova Iorque, todo mundo vai. Quem viaja para
Naishpur?
Gostava de escrever e de
crianças, queria estudar Letras ou Pedagogia, ser professora. Foi uma colega
demonstradora que falou de outros jeitos de ganhar bom dinheiro sem se
comprometer, dava até para se divertir. Não foi tão complicado e daria para
cursar a Faculdade de Letras, PUC, onde conseguiu entrar e ainda ganhou uma
bolsa parcial.
Quase três anos nessa
vida. Supermercados nos lugares mais variados, um ou dois ônibus até a PUC, na
volta ônibus, metrô, trem, outro ônibus até chegar ao Jardim Represa depois da
meia-noite.
Quando ia para a Augusta dizia à tia que tinha ido trabalhar no interior e só
voltava no outro dia.
*
O motorista do táxi o
olhou pelo retrovisor quando ele disse o destino, misto de surpresa e
contentamento com corrida tão longa. Calculou uma hora e meia de viagem. Saíram
de São Paulo, Via Anchieta, Santo André. Uma avenida depois outra e outra e
outra e outra. Caíram numa estrada estreita e movimentada, cheia de curvas e
lombadas e casebres lado a lado. Depois uma mata grande no caminho margeada num
ponto e outro pelos
braços de um lago, era a represa. Passando o trecho da mata apareceu outro
amontoado, dezenas de casas sem reboco, ruas e ruelas que se ramificavam. Muita
gente olhando, estranhando o táxi de São Paulo e seu ocupante. O motorista
parou num boteco para se informar da rua.
Uma mulher idosa abriu a
porta da casinha assobradada, também sem reboco como as vizinhas coladas nela.
Professor Hélio? Pode entrar. Ele abriu o portãozinho de ripa e subiu a
escadinha.
Sorveu o primeiro gole
de café, Dei aula para ela na PUC, em São Paulo. Coitadinha, minha sobrinha era
menina boa, cuidava de mim, me ajudava muito. Eu que criei ela. Agora tenho mais
ninguém. Trabalhava bastante, viajava muito por causa do serviço, às vezes
ficava dois, três dias sem vir pra casa. Até de fim de semana. Era difícil,
porque tinha aula na faculdade, em São Paulo, chegava tarde da noite. Faculdade
cara, coitadinha da minha Ana. Inteligente, gostava tanto de ler. Fazia a unha
de domingo, pegava um livro e ia pra laje, tomar sol, secar o esmalte.
Entrou no pequeno
quarto, era dia, mas precisou acender a luz. A janela dava para um corredor de
paredes que descia estreito e sombreado, mesclava o alaranjado pálido do
tijolo-baiano, o acinzentado do cimento descorado e os tons do verde musgo da
umidade, amontoado socado de construções
vizinhas, irmãs, parede sustentando a outra. Um
caleidoscópio opaco, sem reflexo, enquadrando no final um pedaço da represa, um
rasgo de céu entre os vãos das lajes e um pouquinho de mata ao fundo. A cama
arrumada, bonecas sobre a colcha, armário com espelho na porta, quis abrir,
pensou nas roupas e no cheiro dela, se conteve. Viu a Lettera 10 em cima da
escrivaninha e numa estante Hilda Hilst, Cadernos Negros, Drummond, Teoria Literária, Alice no País das Maravilhas,
Ana Cristina César, Bataille, Adélia Prado, João Antonio, Solano Trindade e
outros. Sentiu-se estranho, em vão a fuçar com os olhos o quarto, os móveis, as
mentiras, os livros e os ecos da moça morta, como se a traísse.
A imagem da tia no
espelho do guarda-roupa foi quem o interrompeu, virou-se para ela que lhe
estendia um caderno grande, de espiral, na capa o desenho de uma menina branquinha
oferecendo uma margarida. O senhor não sabe como ela escrevia nesse caderno.
Mas tava sempre guardado, eu não mexia, nem sabia onde ela deixava. Só depois
que ela se foi que eu vim mexer. Parece versinho.
Foi se comovendo com a
leitura, achou os que ela havia datilografado para ele. Leu outros poemas,
gostou, talvez cortasse algumas coisas. A letra miúda e redonda e elegante a
falar da existência, da pobreza material, da condição feminina, da marca da
pele, da solidão; dos estranhamentos e vontades do corpo, do amor de homens, do
amor de mulheres, verso livre, explícito, às vezes dúbio. Uma rebeldia, uma
queixa silenciosa, uma raiva, um palavrão. Uma ironia:
“O rapaz, faminto, não
sabe ao certo
o que vai encontrar
entre as pernas daquela dama”.
O táxi ia rápido. Olhava
sem ver o caminho, agarrado ao caderno. De vez em quando folheava, lia um poema
devagar. Fechou os olhos, recostado no banco. Seria bom publicar como uma
descoberta dele, um talento poético perdido prematuramente e que nem pode desfrutar
disso ou mesmo perceber-se assim. Ao mesmo tempo ele faria uma homenagem íntima
e secreta. Ficou contente consigo mesmo, imaginando como ela também ficaria
feliz. Mesmo que depois quisessem saber mais quem era, como a conhecera.
Principalmente isso. Dificilmente, em algum momento, não descobririam que a
ex-estudante de Letras fazia programas numa boate da Augusta. A descoberta
faria alarde, havia o risco. A tia podia ficar sabendo, não seria justo com
ela. Depois ele tinha sua mulher, era conhecido por suas histórias para
crianças. Viu-se amargurado. Como iria dedicar o livro a ela ou lançar obra de
alguém que morrera, poeta inédita e desconhecida?
*
Há meses o editor pedia
novidades, quase três anos que não lançava nada de novo, nem infantil, e ele
tivera um adiantamento generoso. Sem saber o que dizer, falou de algo
engavetado fazia tempo e que talvez tivesse chegado a hora de mostrar. O editor
quis saber mais. É poesia. Poesia? Disse a outra voz sem entusiasmo. São poemas
femininos. Femininos? Eróticos? Perguntou o editor, melhorando o tom. Vou lhe
enviar alguns. Bom, pode ser bom, me dá umas ideias. Manda assim que puder.
Desligou o telefone sabendo que não teria mais volta.
O editor adorou, levantou-se
da mesa para recebê-lo na porta da sala com um abraço efusivo. Que poemas
lindos. Como pode esconder esse tempo todo? E se a gente lançasse sem dizer que
é você? Como alguém que não quisesse se identificar, a gente mantém o suspense
e, depois, mais para frente, alguém descobre que você é a Shirlei Sombra.
Embora eu continue não gostando desse pseudônimo, mas seria uma boa forma de
reaparecer, despertar o interesse da imprensa e críticos com uma coisa
diferente. Um mistério assim ia ajudar nas vendas, por mais que poesia... Ele
riu tímido para o editor.
No táxi para o aeroporto
foi pensando que não deixava de ser uma homenagem a ela. A autoria, de um jeito
ou de outro, estava ali, a assinatura era o nome de guerra de Ana. Ia exigir
que o diretor de arte usasse a silhueta do rosto dela na capa, silhueta que ele
mesmo fizera, aproveitando uma foto e usando um programa de computador caseiro.
Ela estaria presente ali, sim. Ao mesmo tempo ele quitaria sua dívida e
ajudaria a tia, algo que Ana jamais conseguiria se fosse batalhar sozinha em
qualquer editora. Foi se equilibrando entre entusiasmos momentâneos e certa
melancolia.
*
O caderno de Shirlei Sombra surpreendeu. Não demorou seis meses e um jornal importante
estampa na capa do suplemento de cultura “A verdadeira face de Shirlei Sombra”.
A novidade se espalhou, vieram mais artigos, reportagens e pedidos de
entrevista. Por que Shirlei Sombra permaneceu tanto tempo escondida? No começo
não se encabulava, até achava graça e se divertia com os questionamentos sobre
a imersão “na alma feminina”. Justificava o segredo pela timidez, o jeito
mineiro, eram tentativas poéticas. Pesquisadoras de universidades se debatiam;
críticos manifestavam a surpresa com seus “versos de mulher”. Houve quem
dissesse que ele era mais feminino que Chico Buarque em suas letras de música.
Ia bem nas vendas para um livro de poemas, o que despertou novo interesse por
obras anteriores, sua agente já falava em reedições e na negociação para uma
coletânea com seus melhores contos.
Fez tardes de autógrafo
em sete capitais e os convites continuavam a chegar, feira de livros, festivais
literários, bienais, solidariedade a causas femininas, às questões de gênero.
Os sonhos com Ana não demoraram. Noite chuvisquenta, rosto repentino no vidro
molhado da janela, olhava para ele e baixava a cabeça devagar, sorriso sem
graça, se virava e sumia na bruma, moça fantasma, resignada.
*conto publicado no livro "amores malfadados", de Luiz Henrique Gurgel (Editora Primata, 2021)