Sonhos de Deusa, Adriano Espíndola dos Santos

 por Adriano Espíndola dos Santos___

 

Jr. Korpa



Eu tinha sete anos quando meu pai desapareceu. Foi um grande o alvoroço. Óbvio que a nossa vida não era um mar de rosas, mas não era para tanto. A dependência emocional da minha mãe, sim, impregnava os nossos sentidos com o calor de sua aflição. Ela chorando copiosamente, dizendo que meu pai era um canalha, tratante, que havia arrumado outra e abandonado a família. Meu irmão, então com cinco anos, chorava porque minha mãe chorava. Eu já entendia um bocado de coisa e, nos primeiros dias, fiquei absorto, prevendo ser um engano do destino; que meu pai aportaria hora ou outra, trazendo uma enormidade de presentes, para desfazer o mal-entendido que havia provocado. Mas, não, os dias foram passando, graves, com o peso da decadência de minha mãe – por consequência, meu irmão entrava no mesmo fosso. Com dez dias, debilitado, compactuei com a fraqueza e com o espírito neurótico da casa. Não havia sequer rastro, uma pista que denunciasse o paradeiro de meu pai. Supliquei aos ouvidos moucos do meu avô para procurá-lo no hospital, no necrotério, onde fosse, e nada, não me davam importância. Era apenas um menino mimado. Então, o pai de minha mãe mudou-se para a nossa casa, para tentar amenizar o fado. Pelo contrário, ele fazia questão de aumentar a gravidade; reforçava o ódio de minha mãe. A essa altura, o meu pai convertera-se – pelos esforços de meu avô materno – num monstro ou num demônio. “Melhor que esse canalha não esteja aqui, porque, pelo menos, agora vocês têm paz”. Eu não entendia o que o meu avô falava; a paz que ele delatava era uma alegoria disforme, algo surreal, que não nos pertencia. Eu presenciava a minha mãe atormentada no banheiro, sem poder se levantar, sendo lavada por suas secreções e pelo volume agoniante de sais de suas entranhas; na cozinha, sem conseguir comer há dias, com a garganta tapada; na sala, esperando, feito uma estátua, o retorno de meu pai – que, obviamente, não mais viria. Meu irmão adotou o colo do meu avô, que tentava acalentá-lo, sem sucesso. Eram horas infindáveis de desespero, com gritos ensurdecedores de meu irmão, de minha mãe e de meu avô, achando que, respondendo da mesma forma, poderia domar o horror. Se dependêssemos exclusivamente de minha mãe – e, lógico, de meu pai –, estávamos sem chão, sem ar. Vovô limpava a casa e fazia comida. Não posso esquecer, porque a comida era um purgante, pior que remédio; mas éramos obrigados a comer, pela falta de tudo. Com duas semanas sem ir à escola, recebemos a visita da senhora diretora – do colégio, que ficava a duas quadras de casa –, que, por cortesia ou caridade, decidiu não nos cobrar a presença; que, dadas as circunstâncias extraordinárias, estudaríamos o tempo que fosse preciso em casa, mas teríamos de realizar as tarefas e as provas. A intenção, pelo que parecia, era de nos confortar, mas nada seria capaz de mudar a sensação de suplício coletivo a que estávamos encerrados. Não dava; abandonamos a escola depois. Minha mãe também largou o trabalho de mão. Conseguira um atestado, que, supostamente, teria a validade de quatro ou cinco dias; não podia servir a um afastamento prolongado, e, aí, foi demitida. Meu avô estava nervoso, andando de um lado a outro, desnorteado, sem saber o que fazer para cobrir o imenso desfalque – falo das partes afetiva e econômica. Foi, então, que ele teve a belíssima ideia de ir à padaria para desanuviar, como disse, e me levou a tiracolo. Lá, nos entupimos de doces e salgados. Ele me confidenciou que não estava mais aguentado ficar na nossa casa; que os dias estavam cada vez mais tormentosos, difíceis de arrumar; que só eu, um menino ajuizado, o ajudava a se sentir melhor. Eu sempre amei o meu avô; foi o meu segundo ou único pai em todas as horas. Voltamos para casa deprimidos, chutando pedras pelo caminho, levando quitutes para o pequeno e para a minha mãe. Quando despejamos os doces na mesa, os dois fizeram cara de pouco-caso; mas, ainda assim, pegaram um quindim e um sonho, respectivamente. Minha mãe, ao comer e se lambuzar com a guloseima, reluziu e passou a desejar avidamente decifrar aquela receita. Foram horas e dias na cozinha. Aquilo lhe arrancou da catatonia. Nos testes, ela liberava provas deliciosas para todos, e percebíamos, além disso, o seu ânimo por viver. Parece que havia se esquecido dos males do passado; como se nada houvesse acontecido. No trigésimo dia, minha mãe descobria uma fórmula milagrosa. A leitora pode achar um tremendo exagero, mas não, esta foi a razão de nos sacar do estado de morte em vida. Reluzimos todos. A marca do produto se fez num estalo: Sonhos de Deusa; oportunidade em que minha mãe teve, pela primeira vez, orgulho do nome, Deusimar. Eu me lembrei – e me desculpe a comparação esdrúxula – da música: “Como uma deusa, você me mantém…”. Que horrível, né?! Minha mãe odeia essa música – nesta maldita hora, estou rindo do infame trocadilho; se aprendi a rir de minhas próprias desgraças, isso é uma ressurreição. Vendíamos, de início, de porta em porta; depois, com o prodígio, minha mãe e meu avô, o seu agenciador e gestor, montaram uma lojinha numa rua central do bairro, e foi o maior sucesso. Como o famoso Pastel de Belém, a marca ganhou notoriedade, inclusive nos bairros nobres da distinta urbe. Sonhos de Deusa é a nossa forma de vida, uma filosofia, um amor. Não temos concorrentes ou competidores, sempre parceiros. Enfim, estava falando do meu pai. Sobre o quê mesmo? Ah, por coincidência hoje é o Dia dos Pais. Que bom.

 

 

 


Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes.  É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto |  @adrianoespindolasantos/ Email: adrianobespindolasantos@gmail.com