por Adriane Garcia__
Termino
a leitura deste livro e conto o que dele em mim reverbera. Talvez seja aquilo
que em você também coincida – ou não – já que a leitura da obra de arte é um
exercício da autonomia e da subjetividade única que nos constituem, a cada uma
(um) de nós. É nesse sentido que a obra de arte colabora para a consciência do
ser/estar no mundo, da cidadania, uma vez que no contato de uma pessoa com o
conteúdo artístico a autoria não se impõe autoritária, mas transita entre quem
cria e quem cocria. A minha leitura está inevitavelmente tomada pelo meu mundo
que encontra o mundo do poeta. A leitura aproxima, no mínimo, dois mundos. Não
saímos ilesos do trânsito.
Sempre
me intrigou a máquina do mundo e quando descobri que eu fazia parte das
engrenagens, que nada escolhi, que quando nasci tudo já estava pronto sem minha
permissão, confesso que foi dos meus primeiros estarrecimentos. Agora me deparo
com Máquina, de Eleazar Venancio Carrias, que contém uma máquina
para ser imaginada, ao mesmo tempo que descrita como é. Cá estou no paradoxo
que me leva a questões ontológicas. Como um Hamlet existencialista, o
poeta indaga: ser ou existir? Ser peça de uma máquina fatal, peça inominada, ou
reivindicar um nome? O desejo ancestral na encruzilhada, o antes do “mal-estar
da civilização”, encontro de vida e morte com a vida.
Concordo
com as perguntas do poeta, para algumas tenho mais respostas do que coragem,
mas a poesia não está nem aí para o nosso conforto, a poesia incomoda. Fazer
parte da máquina ou boicotar a máquina? Viver como um protesto: “Não quero
construir nada. / Talvez uma letra de música / da mais vagabunda / para tocar
na estrada”. Também quero aceitar a construção apenas como um construir-me,
quero me construir desconstruindo, mas a máquina deseja apenas que eu repita
gestos e modos que não coloquem em pane seu funcionamento. Enxerga o mundo? O
vizinho “que ainda liga o rádio” questiona, mas não deixa de nos contar as
imagens de amor que encontrou na estrada.
Reverbera
em mim este assunto que a literatura tem trazido, rompendo o silêncio no
ampliar das vozes: o abuso sexual infantil, pois é preciso dar nomes às coisas,
o nome certo. É preciso também abandonar a pressa de se rotular. A poesia nos
pega pela mão, no meio da beleza, e nos diz que rótulos podem definir quem mata
e quem morre, o opressor e o oprimido: “Se nosso irmão não se chamasse Caim,
/ teríamos Abel conosco esta noite. / O pai nunca se perdoou por ter/ escolhido
o nome errado”. É denúncia e vontade de parar esta máquina, de emperrá-la dizendo
do amor e da liberdade que a enfrentam. Ela mesma – a máquina – sabe que poetas
não podem habitar a República.
Terminei
esta leitura pensando na poesia que observa o mundo, feito as gentes da terra
que plantam, olham a lua, conhecem suas fases, retornam a uma ancestralidade
que soube viver em outro tempo, mas que também questiona. Quero alguma asa para
meu pássaro interior, quero os conselhos de O velho pai, quero estar
atenta mesmo não dizendo a palavra câncer e gozar livre da máquina. E se eu
tiver alguma inveja, que seja a mesma de Eleazar Venancio Carrias. Quero
ter inveja da lucidez de Eugênio Montale, o poeta genovês que planejou
seu Diário póstumo para depois de si. Quero ter inveja de alguém que
acreditou na morte e trapaceou com ela. Por isso, cito os versos de Montale:
“A
cada dia, uma revolução
nas
estações, nos povos, nas ideias.
Todas
as decisões são transferidas sine die.
Nada
mais é estável, a não ser alguma canção
repetida
sob todas as bandeiras.
O que
se vai salvar, deste aguaceiro,
não se
sabe. Talvez depois de tanto estrago
até
mesmo a palavra acabará no brejo.
Resta-nos
apenas a esperança de que algum
anacoreta
destile resinas douradas
dos troncos
emurchecidos do saber”. *
***
Máquina
Eleazar
Venancio Carrias
Poesia
Editora
Urutau
2021
*
MONTALE, E. Diário Póstumo. Tradução I. Barroso. Rio de Janeiro: Record, 2000
Texto
originalmente publicado como posfácio.
Eleazar Venancio Carrias nasceu em 1977, no interior da Amazônia. Publicou os livros Regras de fuga (2017) e Quatro gavetas (2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura, na categoria poesia. Doutorando em Educação na Amazônia pela Universidade Federal do Pará e mestre em Educação pela Universidade de Brasília, atua como pedagogo no Instituto Federal do Pará-Campus Tucuruí. Vive em Breu Branco-PA, Brasil.
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).