Se não posso falar | Adriano Espíndola Santos


por Adriano Espíndola Santos__

 

Foto: Marianna Smiley

Tenho muito a dizer. Mas a verdade é que não consigo, assim, facilmente; meu coração é uma ilha cercada de ossos. Tento me abrir com a minha mãe, contudo ela sempre emenda em tragédias pretéritas, da época de sua infância, que, falando sério, não sei se é exagero ou invenção – conheço de cor todas as histórias, repetidas à exaustão. Na semana passada, tomei a decisão de não declarar mais nada a ela. Cansa, sabe? A vida dela é mais dramática de que a de um mendigo embaixo da ponte; a vida dela é tão horrível quanto à da mãe de Suzana, a assassina dos pais – só que sem ser morta, óbvio; pelo menos por mim. Às vezes sinto que não ser ouvida é pior que a morte. A morte é um fundo falso; pronto, acabou; e eu estou aqui. Não saio aos sábados. Não vou à missa. Não vou ao parque. Nos feriados também fico em casa, no meu quarto – é um local com noventa por cento de segurança, nos meus cálculos. Pode cair o reboco; um avião pode atingir exatamente o meu refúgio, por ser no segundo piso, mas as chances são mínimas. Com quem eu podia me abrir? Você pode se questionar… Sim, tenho – ou tinha – duas amigas, mas a primeira, a Laura, tem três filhos e vive “doida”, como diz; a segunda, a Angélica, tem problema no coração, uma fragilidade congênita, ou seja, não pode ouvir nada que a abale. Sei que não falaria amenidades. Sobra-me o quê ou quem? Quero que saiba que tive o mais importante de todos os ouvintes, amigos, parceiros: o meu avô Edésio. Ele era mesmo um amor; um ser humano que “não era desse mundo”, como contava. Na ausência de meu pai biológico, que me renegou, porque julgou que “numa transada” não poderia ter engravidado minha mãe, ele, o vovô, me adotou, com todos os predicados de pai. Eu o tinha como pai, ou mais que isso. Nunca nem quis saber do canalha, que fugiu, alegando que teria trabalho em outras bandas. Foi-se para o extremo Sul. Abandonou a família – falo dos pais, dos irmãos, primos, tios, e a mim – por pura aventura. Ele que não me venha, agora, pedir perdão. Nem sei por que falo disso; é uma situação absurda, impossível de acontecer. Não entendo como um traste pode ter saído de um homem tão doce como o meu verdadeiro pai, vô Edésio. Apesar dos pesares, o vô pedia para eu não deixar de falar com o seu filho, se ele se arrependesse. Há uma ínfima possibilidade de eu o receber, mas não presentemente; não teria condições psicológicas… Vô Edésio morreu há um ano e meio, e largou uma porção de cinzas e rosas atrás de si. Choro por sua ausência, porque, numa situação dessa, em que me encontro fragilizada, ele estaria na minha cola; decerto, me levaria, primeiro, ao Centro, para comermos um bom pastel no Leão do Sul, como fazíamos desde que eu era pequenininha; ao cinema, para assistir a uma bela comédia romântica, a que estivesse em cartaz; ao lar dos reformados, à Praça do Ferreira, para que pudéssemos ficar um tempo olhando o movimento, falando com um e com outro, os nossos amigos, supondo dramas e vitórias, ao prazer do tempo. Na última depressão, dessa que ainda não saí, que oscila como um tufão, ele foi o responsável por me proporcionar os melhores sonhos. Comprou, num dia de domingo, a comida que mais gosto, uma bela moqueca de arraia, da Casa do Marcão. Mandou entregar na minha porta, como um presente; a justificativa era que, em razão da Covid, não podia vir pessoalmente. Ele morreu uma semana depois. Não pude velar o seu corpo. No cemitério, seis pessoas, filhos e netos; menos eu, afastada, desmanchando-me de longe. Titubeei em me despedir do vô, porque o meu genitor poderia estar lá. Lógico, não foi, é covarde; e eu navegando numa cega e miraculosa ilusão… Minha mãe está na sala, morre-não-morre, por causa de uma dor de cabeça. Não sei se é verdade, também não quero mais saber. Os dramas artificiais sufocam a minha garganta, o meu corpo inteiro. A minha convivência com ela é, quem sabe, a maior tortura. Ainda por cima, diz que sou obrigada a cuidar dela. Ora, depois negligenciar em tudo. A comida quem trazia era o vô, por amor a mim; segredava. “Sua mãe, minha filha, é uma coitada… Não entre nessa onda, senão quem se lasca é você”. “Quem fica no lugar do miserável, miserável é”. Ele tinha desses dizeres, antigos, sábios. E olhe que fiz muito para a minha mãe sair do perrengue. Mas ela não quer; inventa sempre um novo; estou convencida disso. Paciência. Tenho de arranjar um jeito de cuidar de mim, pelo menos uma vez; pelo menos para sair viva daqui.



 


Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. Instagram: @adrianoespindolasantos | facebook.com/adrianobespindolasantos  adrianobespindolasantos@gmail.com É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.