por Taciana Oliveira __
A professora e poeta Giselle Ribeiro em sua resenha para a Revista Caliban sobre o mais recente trabalho da escritora Wanda Monteiro, escreve: “Este Chão de exílio é sim um álbum de fotografia de família falado, contando as horas, minutos e segundos de um tempo suspenso que ao invés de ter ponteiros frenéticos marcando a convivência familiar, se deixou cair na violência imposta pela ditadura, que no hoje volta a querer faiscar.
Na edição desta semana conversamos com Wanda Monteiro: Talvez Chão de Exílio tenha esse propósito: Fazer com que as pessoas deem mais valor à democracia, ao saber que um dia nós a perdemos e que ela vive sob constantes ameaças.
1 – Conhecendo sua trajetória como ativista dos direitos humanos e escritora de quatro livros de poemas publicados, como você descreveria a sua experiência ao produzir Chão de Exílio?
Ao trabalhar a memória dentro de um campo
literário, eu me senti diante de uma fronteira abissal entre a língua e
linguagem e me lembrei de uma passagem do livro O Grau Zero da Escritura em que
Barthes dizia:
" Nesses momentos em que o escritor
acompanha as linguagens realmente faladas, não mais a título pitoresco, mas
como objetos essenciais que esgotam todo o conteúdo da sociedade, a escritura
toma como lugar de seus reflexos a fala real dos homens; a literatura não é mais orgulho ou refúgio,
começa a tornar-se um ato lúcido de informação, como se devesse primeiro
aprender, reproduzindo-o, o pormenor da disparidade social; a literatura se
propõe a dar conta imediatamente, antes de qualquer outra mensagem, da situação
dos homens murados na língua de sua classe, de sua região, de sua profissão, de
sua hereditariedade ou de sua história. " (faria aqui um adendo e trocaria
a palavra homens pela palavra humanos).
Como o livro traz à tona histórias vividas, na
época da ditadura, por minha família: os constrangimentos, o isolamento social, a negação dos espaços, a rejeição por conta da cassação, as prisões e a
perseguição política sofrida pelo meu pai, eu me vi diante do abismo da página
em branco. Optei então, por um livro de contos escritos numa narrativa híbrida
que se desenha com prosa e poesia e que constrói uma memória revisitada e
reinventada com alegorias, onde o tempo e o espaço se fundem num chão de exílio
metafísico.
Esse processo criativo exigiu muito silêncio
para que eu fizesse um mergulho profundo na memória. Escavar fundo a memória,
revisitá-la, vivê-la para reinventá-la e trazê-la à tona numa narrativa feita
com a sua amorgrafia numa linguagem literária.
Devo dizer que, antes de achar a senda para a
escrita desse chão de exílio, eu busquei muito por um farol que me apontasse
esse caminho e encontrei na escritura de Benedicto Monteiro, em seu livro Transtempo,
essa luz:
"... O passado, o presente e o futuro não
passam de aspectos diferentes, gravuras de um registro contínuo e universal da
existência perpétua.
… por isso esta história não tem um tempo. Nem
mesmo um tempo fracional. Passo a escrevê-la num transtempo que inclui o
passado, o presente e o futuro no exato momento desta narração."
Pra mim, escavar a memória, e revivê-la é como
revolver o avesso do tempo e ficar diante dos abismos de meu próprio tempo.
Apreender a linguagem de uma realia pretérita
foi um ato humano, solitário e profundamente trabalhoso.
Sobre essa experiência posso dizer que foi
como naufragar e voltar à tona, ainda sem fôlego. Doeu. Ainda dói.
2 – Chão de Exílio é o primeiro volume de uma trilogia
em homenagem ao seu pai. Você acredita
que no momento atual que vive no país, trazer elementos biográficos dessa
trajetória é um exercício de combate ao apagamento de um dos momentos mais
cruéis da nossa história?
Benedicto Monteiro, dizia:
"
… só podemos amar aquilo que conhecemos e só podemos defender aquilo que
amamos. "
Talvez eu esteja atendendo a esse chamado de
meu pai. Contar um pouco da história, nessas dobras de temp. Talvez Chão de
Exílio tenha esse propósito: Fazer com que as pessoas dêem mais valor à
democracia, ao saber que um dia nós a perdemos e que ela vive sob constantes
ameaças. Conhecer mais sobre a história de nosso país, de que por muitos anos
fomos colonizados e de que também vivemos muitos e sombrios anos sob o julgo de
uma ditadura militar. Fazê-los compreender que a democracia é um processo e uma
luta permanente. É premente conhecer esse chão demarcado como nossa nação -
amá-la - para assim defendê-la quando ela é ameaçada.
3 – Em “Aprender o Silêncio”, você nos
entrega: Miguel, o pai, sofreu a cassação
de seus direitos civis pelo golpe militar, por ser considerado um perigoso
subversivo que defendia a reforma agrária. Mas para nós, os pequenos, as
palavras: cassação, direitos civis, golpe militar, reforma agrária eram
palavras sem imagem. Essas palavras eram outros silêncios.
Nós
nos olhávamos e nos abraçávamos sob o denso e pesado silêncio.
De
que forma a atuação do seu pai como escritor e humanista repercutiu na sua
formação como escritora?
Meu pai não me ensinou apenas a leitura dos
livros. Sua abnegada luta pela reforma agrária e por ideais de justiça e
liberdade sempre foi uma inspiração para mim e sempre me guiou na leitura da
vida. Ele costumava me levar a concertos de música, exposições de pinturas e esculturas
e peças de teatro, e essas jornadas me abriram muitos horizontes e fui a cada
dia mergulhando nesse campo da linguagem artística e tudo isso soma-se até hoje
ao meu imaginário e a todo sopro de inspiração que me acomete. Mas, para além
das referências e do sopro da inspiração o que me cabe nessa formação é a
cotidiana busca no tudo-sempre-da-vida – esse garimpo nas coisas miúdas, na
revelação diária das paisagens – na mágica da natureza em suas diásporas, nos
gestos humanos. E sobretudo, me cabe esse mergulho mais profundo no dentro de
mim, fazendo a prospecção dos sentidos e percepções mais íntimas e apuradas de
minha existência nesse meu escreViver. Minha mente é o avesso do espaço
onde a realidade mediata acontece, é meu outro céu, meu outro chão – é lugar
absoluto onde me corporizo e corporizo a existência para fora de mim. É na
mente – espaço das imagens – que renomeio e reSignifico o mundo. É na
mente, esse lugar irremediável que eu, em movimento contínuo, condenso, as
utopias e os maravilhamentos para reinventar o tempo, o espaço, as
profundidades, nesse todo povoado pelas coisas vivas e redivivas. A mente é um
processo e dela, decorre a consciência de toda existência.
4 – A Wanda
Monteiro de Liturgia do Tempo e outros silêncios (Patuá, 2019) e Aquatempo –
Aquatiempo (Patuá, 2020), carrega na sua poética traços predominantes da sua
geografia afetiva. Você inclusive se
apresenta como uma “amazônida, que nasceu nas águas do rio Amazonas”. No conto “A filha do Rio”, você escreve: O tempo esse rio. Pode o rio ser essa
serpente que me seduz à foz? Pode ser o rio a deusa de barro ou pode ser o pai
escrito nas águas? Posso ser eu, em suas entranhas, a caligrafia sanguínea – o homem
e a mulher na transfusão de sua passagem? Posso ser eu a água, esse verbo a
conjugar-se em se morrendo e se vivendo à luz do instante seu ventre?
O seu fazer poético de alguma forma perpétua
elementos da sua ancestralidade?
Como já disse,
no Chão de Exílio, esse livro em particular, eu naufraguei e sobrevivi ao
naufrágio. No entanto, posso dizer que todo fazer poético ainda que não se
instale um naufrágio é por si só um mergulho: uma imersão no fluxo do
pensamento. E quando esse campo submerso se constitui em camadas de memória, é
mesmo como correr no fluxo regressivo do pensamento e penetrar no lodo mais
fundo em busca de um devir aparentemente inorganizado. E tudo que é revisitado
é tão aparente e impermanente. Nessa imersão nos aflora um sucedâneo de imagens
e sensações reinventadas. Portanto, a memória sublimada no campo poético é
sempre uma reinvenção.
E sim, meu fazer
poético é fruto de meus mais distantes imaginários e dentre eles, cultivo
imensamente os elementos de minha ancestralidade trazidos aos meus sentidos na
quimera da infância.
5 – Que nomes
você destacaria do cenário literário no norte do país?
Queria falar dos
que já se foram (homens e mulheres) sobretudo para não cometer algum
esquecimento com todos e todas que estão em cena. Mas você me indaga de
cenário.
Então vou falar
apenas das mulheres que estão em cena e que me causam o espanto da palavra
poética: Giselle Ribeiro, Lilia Chaves, Roberta Tavares, Mayara La Rocque,
Luciana Brandão, Josete Lassance, Monique Malcher são as que ficaram mais
próximas de meu olhar nessa estação.
Taciana
Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo
Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.
Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing
barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…