por Marcela Güther/Divulgação__
Dançando
com fantasmas: luto, afeto e memória marcam novo livro de Rafael de Oliveira
Fernandes
Publicado
pela editora Patuá, livro aborda uma delicada jornada existencial para
superação de perdas, evidenciando o poder das relações pessoais e da arte como
instrumento para libertação
“‘Baseado
em fantasmas reais’ tenta captar a vida pela força de seus momentos mais
fortes, servindo também como pequeno apanhado de um tempo e uma geração, embora
o faça de uma perspectiva intimista, com descrições que vão desde um amor platônico
de adolescência às experiências de apreciar filmes e discos marcantes da
cultura pop. O que dá liga a tudo isso,
em tantas vivências e recordações, que poderiam soar dispersas, frouxas, são os
fantasmas da mãe e de outros desaparecimentos que pairam sobretudo como sombra,
canalizando assombros e descobertas, transmutando-se em linguagem,
especialmente no tom melancólico que atravessa a narrativa.”
Eduardo Sabino,
escritor e editor, assina o prefácio de “Baseado em fantasmas reais”
A
morte, as perdas durante nossa vida. A redenção diante dos erros do passado. A
solidariedade que encontramos nos outros.
O papel da arte como maneira de olhar para o outro, para nós mesmos e
como forma de libertação. Essas e outras questões existenciais são apresentadas
de forma simples, delicada e poética em “Baseados em fantasmas reais”
(ed. Patuá, 189 p.), do escritor paulista Rafael de Oliveira Fernandes,
também autor dos livros de poesia Menino no telhado (2011, ed. 7letras),
e Cadernos de espiral (2014, ed. 7letras) e do romance Vista Parcial
do Tejo, (2018, ed. Patuá).
Em “Baseado
em fantasmas reais”, uma mãe desaparece de casa sem que a polícia encontre
explicação. Anos depois seus filhos encontram um texto de ficção, aparentemente
deixado pela mãe, em que a personagem principal abandona seus afazeres e foge
de casa num ímpeto. Logo, começam a imaginar que ela pode ter agido exatamente
como a personagem. O narrador da história retoma as buscas pela mãe. Todos os
dias percorre a cidade parando apenas para almoçar na lanchonete "Anos
Dourados" um lugar onde o tempo parece não passar. É um local em que os
garçons se fantasiam de estrelas da década de 60 como Elvis Presley e Marilyn
Monroe, e onde o narrador conhece Nina, uma adolescente inteligente e sensível
que busca pelo seu gato, Donatello, também desaparecido.
Os dois
desenvolvem uma forte amizade e a partir daí, além da busca do narrador pela
mãe, acompanhamos sua jornada existencial em que, através das memórias,
questionará seu futuro. Nina, por outro lado, além de tentar encontrar o gato,
buscará o próprio caminho ao adentrar a vida adulta. Enquanto conversam ou
caminham pelas ruas do bairro, o narrador e Nina tentam manter seus fantasmas
vivos, buscando-os e rememorando-os.
“Os
piores fantasmas, este romance nos diz, são os que habitam um limbo entre a
vida e a morte e que, por isso mesmo, por os termos em uma zona nebulosa, nem
vivos nem mortos, assombram-nos muito mais”, escreve no prefácio Eduardo
Sabino, escritor e editor, autor dos livros de contos Estados
Alucinatórios (Caos e Letras, 2019) e Naufrágio entre Amigos (Patuá,
2016) e vencedor, em 2015, do prêmio Brasil em Prosa 2015.
A
música, a literatura e o cinema são maneiras de manter os fantasmas por perto.
Através da arte, ambos tentam desvendar seus mistérios. Olhar para o outro e
para si mesmos. E enfim encontrar o que buscam. “É um debate entre os dois
personagens e também um debate de cada um com seu interior. Cada capítulo foi
construído na forma de uma pequena cena com a exposição de uma memória, um
afeto, ou um medo que levou à solidão”, explica Rafael.
O
desejo do autor foi escrever um romance em que houvesse a intersecção entre
ficção, filosofia e autobiografia. “Meu objetivo foi debater os dilemas
psíquicos e filosóficos dos personagens, os mistérios do universo, mas fundindo
seus dramas e as questões metafísicas à estrutura do texto de forma orgânica.
Trazer outras obras de arte como exemplo de como a arte pode ser libertadora”,
enfatiza o escritor.
Para
Rafael, a melhor literatura trata de temas perenes, que transcendem tempo e
espaço e afetam a todos os seres humanos. “As questões do espírito, da
posição do ser no universo, o enfrentamento da morte, as relações humanas, são
temas que estão aí desde o início do desenvolvimento da literatura, da pintura,
passaram pelo Renascimento, e continuarão afetando o ser humano nos próximos
milênios.”
Entre
as principais referências literárias de Rafael estão Fiódor Dostoiévski,
Jorge Luis Borges, Haruki Murakami e Guimarães Rosa. “Após
o anoitecer”, de Haruki Murakami, “O Aleph”, de Jorge Luis
Borges e “O lobo da Estepe”, de Hermann Hesse, foram as obras
que influenciaram diretamente o romance.
Um
mundo suspenso e um gato perdido
A
lanchonete Anos Dourados, segundo o autor, representa um mundo onírico, à
primeira vista representa quase uma falha no bairro, parece existir em um tempo
diverso. No entanto, ela simplesmente existe ali junto com as casas que
“habitam o tempo presente”.
“O
narrador sai da lanchonete para as ruas do bairro e vice-versa e não é preciso
empreender uma complexa viagem temporal como num filme de ficção científica. Ou
como num filme de ficção científica mais sofisticado, espero, conseguimos
acreditar que basta um passo para estarmos em outro mundo. No livro basta
atravessar a porta giratória da Anos Dourados por exemplo”, aponta
o autor.
Além
disso, há uma forte presença dos gatos no livro, que são vistos como criaturas
mágicas que podem transitar entre os dois mundos. Representam uma ponte entre a
vida e a morte, entre este mundo e o outro, o mundo do narrador e o de Nina.
“A Nina
tem uma relação com o gato de muito afeto e de grande compreensão de seus
gestos e necessidades. Por isso o narrador quase imediatamente percebe nela uma
qualidade rara de ‘falar com fantasmas’, que nada mais é que uma relação
especial com o mundo, uma capacidade de comunicar-se com as pessoas, estejam
elas próximas ou distantes, neste mundo ou no outro. Esta comunicação não tem
nada de sobrenatural, claro, pelo contrário”, explica Rafael. “A
busca do narrador e de Nina por seus fantasmas seja pelas ruas do bairro, seja
apenas no plano metafísico, no campo da memória, inevitavelmente vai aproximar
os dois neste mundo.”
Confira
um trecho de “Baseado em fantasmas reais”:
"Donatello
era o nome do gato da Nina. Não porque gostasse do escultor italiano que viveu
na Renascença. Mas porque Donatello era o nome de uma das tartarugas ninja no
desenho a que assistia quando criança. As outras três eram Michelangelo, Rafael
e Leonardo. Todos artistas renascentistas. De início, achei irreal que
procurasse um gato com tanta obstinação. A diferença entre procurar minha mãe,
ao passo que alguém procurava um gato, representava o mesmo abismo que havia
entre o Donatello escultor e o personagem do desenho animado matinal. A
convivência com a Nina mudou essa visão um pouco. A forma como falava do gato,
a maneira como procurava me cativar, ainda que, de início, eu fosse mais um
daqueles desconhecidos a quem ela mostrava a fotografia do Donatello e
perguntava se o havia visto. Acho que o fato de eu também procurar, no caso,
minha mãe, acabou unindo duas pessoas tão diferentes, quase de diferentes eras
como se uma habitasse a Renascença e outra, o século XXI." (p. 47)
Marcela Güther - Sócia e diretora de conteúdo e relações públicas na com.tato. Está à frente do serviço de assessoria literária, auxiliando autores e editoras a divulgarem seus trabalhos na mídia. Já foi redatora de portais de literatura e revisora de livros e publicações literárias. Organiza o clube Leia Mulheres de Joinville (SC) desde 2017.