Investigando a estranheza do mundo | Thaís Campolina

por Marcela Güther__ 




Investigando a estranheza do mundo: uma entrevista com Thaís Campolina

 

Quem são as testemunhas da presença de cada um de nós na cidade em que vivemos? Como o tempo se manifesta nesse espaço que ocupamos e nas nossas vidas cotidianas e urbanas? Quais cenários compõem o nosso lugar no mundo? Como a junção disso tudo afeta nossa identidade?


É o que questiona a escritora mineira Thaís Campolina em seu livro de estreia “eu investigo qualquer coisa sem registro” (Crivo Editorial, 2021, 74 pág.). Os poemas se concentram em histórias, impressões e olhares considerados banais ou desimportantes, abordando aspectos da vida ou vida comuns que costumam ficar fora dos registros oficiais ou passam despercebidos na cidade. 


A autora trata temas do cotidiano com humor, perpassando por relações humanas, micropolítica, utilizando também elementos comuns da contação de histórias, como cenário, personagens, autoria, tempo e ação. A orelha é assinada por Nina Rocha, jornalista e autora de "Em obras" (Urutau) e "Papéis" (Independente).


A obra foi contemplada em 2º lugar pelo concurso Poesia InCrível, de 2021, promovido pela Crivo Editorial. Com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, o concurso publica obras de poetas iniciantes residentes em Belo Horizonte e região metropolitana. “eu investigo qualquer coisa sem registro” está disponível gratuitamente nos formatos ebook e audiobook e seus exemplares físicos podem ser alugados em bibliotecas, escolas e centros culturais da capital mineira. 


Atualmente faz parte da equipe da Mormaço Editorial e da Fazia Poesia, integra coletivos literários como o Zarafas e o Escreviventes, e também atua com leitura crítica de obras literárias. Em 2020, publicou de forma independente o conto “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija”, via Amazon. Escreve frequentemente sobre literatura em seu site, newsletter e redes sociais.


Confira a entrevista completa com a autora:

 

1 - Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam? Por que escolher esses temas?


Testemunha, mulher, espaço, cidade, cotidiano, autoria, animais. "eu investigo qualquer coisa sem registro" é formado por poemas que trabalham com aspectos da vida ou vidas comuns que costumam ficar de fora dos registros oficiais, mesclando cotidiano com humor, relações humanas, micropolítica e também elementos comuns da contação de histórias como cenário, personagens, autoria, tempo e ação. O livro brinca com a ideia de que é preciso investigar essas histórias, impressões e olhares considerados banais ou desimportantes, enquanto tenta registrar o que importa, mas pode passar despercebido. A presença da cidade e da estrada na obra se relacionam com o fato de que todos somos anônimos, humanos ou bichos, nesses espaços e essa despersonalização inibe o registro de quem está ali de fato.

 

2 - Qual a principal mensagem que você quis passar com a obra?


Acho que quero expor o quanto somos feitos por esses recortes de mundo que nos cercam. Somos afetados por eles mesmo sem perceber. O que está ao nosso redor faz parte da nossa própria constituição e isso é assustador e ao mesmo tempo muito potente.

 

3 - O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?


Esse não é um livro que nasceu como um projeto, ele foi brotando a partir do que eu escrevia. É uma obra que reúne poemas escritos por anos e que foram organizados juntos quando eu percebi que a minha escrita, assim como minha leitura, busca investigar o que me rodeia. Esse tipo de busca que me move como escritora e leitora me levou ao que é invisibilizado por ser cotidiano, por estar embebido de memória e aparente desimportância e subjetividade. É difícil olhar para o que está perto demais. É como contemplar um retrato de um momento, de quem fomos, somos ou podemos ser, mesmo quando a gente parte de um personagem qualquer. Só que investigar evoca também escavar, o que acabou me levando também para aquilo que está escondido simplesmente porque o mundo soterra certas vozes, certas histórias, certas percepções. Pensar no cotidiano, no banal, no que se perde no meio dessa ideia de memória coletiva é também se abrir para perceber o aspecto político disso. O processo de escrita foi solto, sem intenções, com gatilhos de escrita muito diversos, mas a organização do livro partiu desse processo de elaboração que tento explicar aqui, agora.

Gosto de pensar que esse livro é como um caderno de investigação, então dentro de todas as divisões há também relatos discrepantes ou aparentemente discrepantes, porque cada poema é como se fosse uma captação da prova de alguma coisa e nem tudo que se coleta faz sentido no fim de uma investigação, ainda que no durante se mantenha uma possibilidade. E, no fim das contas, o que se investiga no abstrato é sempre o deslocamento das coisas, das pessoas e das autorias, porque é isso que nos faz olhar para as mais diferentes situações.


4 - Quais são as suas principais influências literárias?


Minhas referências sempre estão se construindo, porque acho importante ler o que está sendo escrito hoje, perto de mim. Na poesia, além de nomes como Adélia Prado, Drummond, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Alice Ruiz, Conceição Evaristo, Paulo Leminski, preciso falar de Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Adília Lopes, Matilde Campilho, Marília Garcia, Alice Sant’anna, Sophia de Mello Breyner Andresen, Mila Teixeira, Mar Becker, Tatiana Pequeno, Jarid Arraes, Natasha Felix, Flávia Peret, Helena Zelic, Maria Lúcia Alvim, Bruna Mitrano, Gianni Gianni, Constança Guimarães, e amigas e conhecidas como Nina Rocha, Erica Martinelli, Letícia Miranda, Fernanda Charret, Amanda Magalhães e outras.

A escritora e tradutora argentina Cecília Pavón também é uma poeta citada nominalmente no meu livro.

 

5 - Que livros influenciaram diretamente a obra?


 Acho que eu posso dizer que todo o trabalho da Angélica Freitas me serviu como uma das minhas principais referências para escrever o “eu investigo”, porque, além da poesia dela estar sempre comigo, em 2020, ano que organizei e comecei a editar o livro, eu fiz uma oficina com ela que me marcou demais.

Nesse sentido, posso falar também das oficinas que fiz com a Carina Gonçalves e com a Maraíza Labanca bem antes disso. O que essas três autoras me apresentaram nesses espaços foram essenciais pra eu descobrir que eu queria falar do cotidiano, do banal, do que a gente pode acabar deixando passar batido.

 

6 - Você escreve desde quando? Como começou a escrever?


Escrevo desde que me entendo como gente, porque sempre achei magnífico poder preservar meus pensamentos para poder observá-los melhor depois, mais afastada do momento. Acho que comecei a escrever por ser meio confusa, precisar elaborar melhor as coisas ao meu redor, guardar minhas impressões iniciais e comparar com as posteriores. E isso foi ganhando mais e mais sentido, ainda na infância, porque, além dessa coisa funcional da preservação das ideias, eu sempre fui apaixonada por pessoas e as histórias que elas podem contar. Em algum momento, no lugar de simplesmente fazer notas sobre minhas observações para tê-las como um registro, eu passei a querer guardar também o que eu inventei a partir delas.


7 - Como é o seu processo de escrita?


Meu processo criativo é muito solto, interno, com pouquíssimas notas a serem consultadas por isso, mas muita elaboração por meio da fala. Vou contando pra todo mundo que conheço um pouco sobre esse novo mundo que tem chegado pra mim como se fosse causo, informação, memória ou até mesmo uma simples brincadeira lúdica. Assim descubro se aquilo me interessa mesmo ou não se me divirto no processo.

Poucas anotações acabam sendo uma vantagem e tanto para tomar coragem de começar a botar a mão na massa, mas cria necessidade de mais pausas durante a escrita. Como anoto pouco, lembro das coisas de maneira meio vaga e vivo precisando fazer um fast-checking do que restou da pesquisa na minha memória. Apesar dos desafios, gosto muito dessa mescla entre memória e pesquisa. Gosto de como uma coisa se infiltra na outra, trazendo à tona um mix único do meu eu com o mundo. Essa baguncinha me cai bem, me provoca, me interessa mais do que um fichamento, por exemplo. Acho que o “eu investigo” nasceu disso e outras coisas vão vir no futuro a partir de um processo bem parecido.


8 - Como você se prepara e se organiza para escrever, costuma estabelecer metas de escrita diárias?


Meu ritual de preparação para escrita varia de projeto em projeto, mas, no geral, eu não gosto de criar empecilhos para começar não. Eu simplesmente abro o arquivo e vou. Basta vencer a procrastinação que eu me comprometo, ao menos temporariamente. Se não tenho ideias, mas estou com o bichinho da escrita doido dentro de mim, busco no meu bloco de notas alguma coisa. Vivo anotando frases, parágrafos inteiros, descrições de sonhos ou simplesmente conjuntos de palavras que me chamaram atenção e uso isso como gatilho de criação quando não há nada me provocando na hora. Às vezes busco o que produzi em aulas, oficinas ou atividades de coletivos de escritores para tentar desenvolver mais a ideia ou aproveitar aquilo para alguma outra coisa.

Estou com uma meta de escrita diária no momento, porque estou escrevendo meu primeiro romance. 320 palavras por dia é o que tenho buscado, sem muito sucesso, confesso. Tem vez que eu escrevo mais, vez que eu escrevo bem menos e vez que não escrevo coisa nenhuma. E isso nem me incomoda tanto assim, porque não vejo a criatividade como um processo estanque ou linear, criatividade é movimento, então é natural que essas variações aconteçam e respeitá-las, sem jamais desistir da meta geral, talvez seja a melhor forma de manter a continuidade do projeto.

Fora isso, acho que posso dizer que escrevo todo dia, mas essa escrita rotineira serve mais como um registro a ser consultado posteriormente do que como texto. Às vezes vou anotar uma ideia e vem o texto inteirinho quase pronto, mas, no geral, o que surge nessas horas é mais curto, com pouquíssimo fôlego, simplesmente um registro do que quero investigar no futuro.


9 - Como você cultiva a criatividade para escrever?


Minha criatividade vem do impulso, da empolgação, da diversão, das conversas e da observação. Gosto muito de admirar imagens artísticas e fazer colagens com o que tiver em casa. Considero isso essencial para exercitar meu lado criativo, meu olhar para o mundo e meu poder de criação. Acho que sujar as mãos de cola e pedacinhos de revista ajuda a manter a mente viva. Gosto também de sair pra andar na rua sem destino, caminhar por aí buscando somente observar como as pessoas, animais e plantas interagem entre si e uns com os outros. E amo conversar. Eu nem sei me perceber no mundo sem papear com pessoas. Criar nem se fala.


Ler também é importante pra mim. Gosto da imersão do ato, do estímulo criativo presente, da sensação de que as palavras do livro estão se infiltrando na minha vida, me ajudando a elaborar coisas que eu nem vivi. E amo clubes de leitura. Essa troca com leitores é quase um vício meu. As melhores ideias surgem quando a conversa flui, qualquer leitura fica mais rica assim. Acho que a criatividade vem do movimento, então sempre estou buscando algo que desperte isso em mim e bons papos realmente mexem comigo. Foi desse jeito que acabei me tornando mediadora e organizadora do Clube Cidade Solitária e do Leia Mulheres Divinópolis.


Eu tenho a sensação que só escrevo, porque gosto muito de gente. Quero conhecer pessoas, papear, ouvir o que elas têm a dizer e depois sair contando tudo que descobri. É por isso que sempre me meto em oficinas, minicursos, encontros e coletivos. Foi assim que acabei me tornando parte das Zarafas, grupo de poetas que agora posso chamar também de amigas, e do Escreviventes. Trocar com outras pessoas é parte essencial do meu processo criativo. Criação para mim tem tudo a ver com gente. 


Acho que também posso dizer que sou meio investigadora, fico de olho em tudo, procurando a estranheza das coisas, porque sei que tudo é capaz de despertar uma boa história ou mesmo um bom tweet. Gosto também de contemplar.

 

10 - Você mencionou antes que está escrevendo um romance. Quais são os seus projetos em andamento?


O romance que estou escrevendo fala de luto, memória, família e segredos. Acho que posso dizer que ainda estou tentando descobrir qual é a história que eu estou contando exatamente, apesar de já ter algumas coisas bem definidas.


Meu segundo livro de poesia já está em fase quase final de desenvolvimento, ficando pronto enquanto manuscrito provavelmente ainda no primeiro semestre de 2022. Além disso, estou com um livro de contos parado e um livro ilustrado de poesia infantil sendo construído junto à ilustradora Ana Letícia Lira. O maior desafio é conseguir terminar seus projetos, porque sempre me encanto por algo novo no meio do caminho.




Thaís Campolina Martins nasceu em Divinópolis - MG em 1989, mas vive na capital mineira desde 2014. Bacharel em Direito, pós-graduanda em Escrita e Criação, medeia, organiza e faz curadoria do Leia Mulheres Divinópolis e é a criadora e faz-tudo do clube de leitura online Cidade Solitária. Após ganhar o 2° lugar no concurso Poesia InCrível de 2021, estreou na poesia com o livro “eu investigo qualquer coisa sem registro” pela Crivo Editorial. Também publicou o conto “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” em formato e-book na Amazon e segue escrevendo suas bobagens e incômodos em seu site thaisescreve.com, newsletter e redes sociais.





Marcela Güther
- Sócia e diretora de conteúdo e relações públicas na com.tato. Está à frente do serviço de assessoria literária, auxiliando autores e editoras a divulgarem seus trabalhos na mídia. Já foi redatora de portais de literatura e revisora de livros e publicações literárias. Organiza o clube Leia Mulheres de Joinville (SC) desde 2017.