por Adriano Espíndola Santos__
Foram
dias, meses de atividades incessantes, constantes e doentias; não conseguiria
resumir. Comecei, a bem da verdade, em 1999, no ano em que terminei os estudos
no ensino médio. Logo, por um faniquito juvenil, quando menos vi, já estava dentro
de uma empresa. Fiz um esforço tão grande para entrar, em qualquer que fosse,
que, dos trezentos e-mails que enviei, dez foram respondidos. Participei de
seis seleções; as quatro restantes empresas arranjaram uma desculpa pronta: em
regra, porque não teriam visto a minha idade. Parti para as possibilidades, mas
não medi os problemas; se poderia suportá-los. Lógico, tinha de me virar; meu
pai me incumbira de ser militar, porque era tradição da família, de tantas e
tantas gerações: não quis, nem morto; minha mãe, com a sua frieza lânguida e severa,
tentou logo me mandar para a casa de minha avó que morava no Rio, com quem eu
não tinha contato desde os meus oito anos; a razão é que lá eu iria “ser
gente”; eu deveria “aprender na marra”. O que eu faria no Rio? E logo na casa
de minha avó, senil e bruta? Não! Queria, sim, me movimentar com as minhas
próprias pernas; isso era a glória para mim. Fui selecionado em duas empresas,
uma automotiva, de uma filial da Fiat, e outra que trabalhava com propaganda. A
minha resolução se deu, principalmente, porque, sendo eu infantil, pensei que,
na empresa de publicidade, trabalharia com quadrinhos e afins, o que era a minha
paixão. O salário era menor, de fato, mas via um futuro esplêndido; percebia,
também, que entraria na faculdade de Publicidade e seria um exemplo para o
país, um grande homem empreendedor, e teria, logo, logo, a minha admirável
empresa. Mas a realidade me pôs os pés, chatos, no chão. Comecei praticamente
como contínuo; varria e limpava a sala do chefe; fazia e servia cafezinhos; quebrava
um galho de eletricista e faz-tudo, para ganhar o que hoje seria uns oitocentos
reais. Fato: sentia-me profundamente humilhado; ainda assim, não cogitava
voltar para casa de mãos abanando, se renunciasse a essa única opção. Com a
minha escolha “insensata”, tive de vender um bocado de jogos e videogame; um
conjunto quase novo de som, da marca Gradiente, com uma bandeja para três CDs –
uma maravilha na minha época –; e toda a coleção de gibis e revistinhas que
havia, inclusive de putaria, que embalavam as minhas noites insones. O dinheiro
em si me serviu por cinco ou seis meses. Consegui, porcamente, pagar as minhas
despesas, sempre pedindo um trocado ao Geraldo e ao Vinícius, dois colegas
bondosos da empresa. Passadas a reserva e as ajudas – porque não tinha mais a
quem recorrer –, tive de fazer uns bicos de desenhista – metido a desenhista,
essa é a verdade. O problema é que mantinha um vínculo, ainda que distante, com
a empresa concorrente. Fazia os desenhos que me pedia e, para despistar, dava o
nome de Ernesto Raul. Quando menos esperei, fui chamado a me apresentar ao
chefão da outra empresa. Ele queria me conhecer pessoalmente e, pelo visto,
estava disposto a me contratar. Geraldo e Vinícius notaram a minha inquietação
e tentaram me dissuadir da ideia, falando que seria um desastre, uma tremenda
traição; que o nosso chefe odiava o concorrente; que eu ficaria “queimado” pela
eternidade, se a proposta descabida não desse certo. Pensei dois dias e duas
noites inteiros, e a conclusão se deu conforme o ditado: “O que é um peido para
quem está cagado?!”. Estava atolado em merda; nada mais poderia ser pior. E, no
final das contas, se desse errado, me renderia ao serviço mais baixo, qualquer
que fosse, para sobreviver. Voltar para a casa dos meus pais? Nunca na galáxia!
Entrei no bonde. Recebi o que merecia, uma mesa e material para trabalho.
Senti-me gente; um homem. Com seis meses, o chefe me passou para o trabalho de
um colega falecido de mal súbito, para fazer charges. Nunca me peguei pensando
nisso, que seria possível. Mas foi; e como foi! Segui a linha do colega e fiz
piadinhas usando o linguajar popular. Para isso, tinha de andar de ônibus todos
os dias; para, nem que fosse uma hora, na Praça do Ferreira, acompanhar as
andanças dos vagabundos. Até que um dia o poeta Lázaro me convidou para uma
bebedeira, “só com os chegados”. Ele me disse que eu era um artista e que não
devia entregar a minha arte, assim, de mão beijada para o Capital. Ah, ele me
subverteu. Passei dias sem pisar na firma. O chefe já tinha mandado a polícia
me procurar nos confins do inferno. Quando eu cheguei, virado, ele prometeu me demitir
se eu aprontasse mais uma dessa. E foram longas travessias, várias incursões,
para me descobrir artista. Abandonei a porra toda. Ninguém sabe de ninguém; se
estamos vivos etc. e tal. Escrevo das ruas de Montevideo. Amanhã não sei. Sou,
sim, um artista na contramão.