Tornar-se negro é uma construção política-histórica | Davison Souza

por Taciana Oliveira__





Entrevistamos o artista-visual e pedagogo Davison Souza, autor do próximo lançamento do Selo Mirada: Cota não é esmola: as cotas raciais na UECE. A pré-venda do livro já está disponível no site Abacashi: clica aqui

Lembrando que ao apoiar este projeto o leitor fomenta o debate e promove a doação de alguns livros dessa campanha para bibliotecas comunitárias da periferia de Fortaleza.


1 - Pensando no conceito de educação popular apresentado por Paulo Freire, você considera que sua pesquisa é um instrumento de conscientização histórica?


Acredito que sim! Me alinho muito ao pensamento do mestre Paulo Freire. Nessa perspectiva, o livro busca dialogar a partir de um referencial antirracista, contracolonial e periférico para tratar de diversos temas que atravessam corpos negros em uma sociedade de supremacia branca, como o Brasil.  Vocês verão que o livro começa com um contexto histórico sobre a educação no país questionando onde estavam os povos negros nessas várias reformas educacionais brasileiras. Diante disso, percebemos que a educação institucional sempre foi um privilégio branco, masculino e burguês e esses marcadores se perpetuam na educação superior até hoje.  O livro se torna um instrumento de conscientização, ou como eu gosto de dizer, um aliado, em que podemos contar na construção comunitária de uma conscientização que abarque as populações negras. Pois, como diria a professora Neusa Sousa tornar-se negro é uma construção política-histórica. E diria eu, que a educação é uma das ferramentas para alcançarmos tal conscientização histórica para que possamos ser sujeitos de nossa história e trans(formadores) da realidade de que partimos.

 

2 - O ensino universitário no Brasil ainda desponta com pouca acessibilidade para as “minorias”. Na perspectiva da sua dissertação quais fatores você destacaria como influenciadores nessa questão?


Antes de tudo, gostaria de destacar que as populações negras não são minorias, e que as ditas “minorias” na verdade são a maioria da população brasileira que sofrem discriminações e preconceitos, enquanto uma minoria (branca, masculina e burguesa) usufrui diretamente ou indiretamente de privilégios proporcionados em detrimento de direitos de muitos e muitas.

Dito isso, e partindo de uma análise histórica a educação superior sempre foi um lugar para poucos, um espaço que exclui de seus ambientes corpos fora da norma “padrão” imposta pelo eurocentrismo. Acredito que um forte marcador de exclusão é o sistema racista estrutural, que impossibilita por meio das legislações ou não, a presença de corpos negros na educação superior e em espaço de poder como professores/as, coordenadores/as e reitores/as, por exemplo. Outro ponto é a falta de políticas de permanência, essa ausência impossibilita que muitas pessoas negras não consigam permanecer dentro do espaço universitário por falta de condições financeiras para tal. E por fim, eu destacaria o currículo, que se configura como branco e masculino, excluindo dos espaços de construção de conhecimentos a cultura, história, saberes e formas de ser das populações negras. O que se caracteriza como genocídio se nos pautarmos nos textos do mestre Abdias Nascimento ou epistemicídio na literatura da professora Sueli Carneiro.

 

3 – Você consegue perceber a produção do teu livro Cota não é esmola: A cotas raciais da UECE como um referencial pedagógico?


Não diria um referencial pedagógico. Mas uma obra importante para quem deseja estudar as relações raciais na educação. Um referencial importante para quem deseja dialogar sobre as políticas de cotas tanto a nível nacional, como a nível estadual (Ceará). Na minha concepção o livro é um material que nos ajudará a re(pensar) a educação institucional no Brasil a partir de uma perspectiva antirracista, anticolonial e anticapitalista. Para que de fato, possamos ter uma educação que possa abranger todas as populações negras.


4 – Como você descreveria as etapas de construção da pesquisa até a trajetória final da elaboração do livro?


Nossa, foram tantas, com diversos percalços. Mas vou tentar resumir. A pesquisa começou a ser pensada e elaborada em 2019, ao longo dos meses daquele ano, fui pensando em como construir uma pesquisa sobre educação que dialogasse com as questões raciais. Foi então, que surgiu a ideia de escrever sobre as políticas de ações afirmativas e consequentemente sobre as cotas. A pesquisa foi atravessada pela pandemia global em 2020, então, ao longo das horas de leitura, diversos fatores emocionais, físicos e sociais me atravessaram. Junto a isso, foi um desafio escrever boa parte da pesquisa pelo celular, já que eu não possuía um notebook para trabalhar. Durante todo ano de 2020 a pesquisa ficou focada nas partes da leitura e escrita do texto. Dentre os posicionamentos do livro, decidi que ele seria afrorreferenciado, ou seja, iria ter quase todas as referências de autores/as negros/as. Dentre eles/as: Aimé Céssire, Angela Davis, bell hooks, Nilma Lino Gomes, Sueli Carneiro, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento dentre centenas de obras lidas e refletidas.  Ao pensar essa pesquisa, pensei em duas questões guias; para quem eu escrevo? E por que eu escrevo? Essas duas perguntas guiaram/guiam meu processo de escrita e diante disso, optei por realizar uma pesquisa acessível, que pudesse chegar tanto nas periferias como dentro dos ambientes acadêmicos. Nesse percurso, optei por usar como referências diversas linguagens artísticas negras, como rap, slam, reggae, cordel, forró e samba. Tais linguagens serviram para decodificarem assuntos como meritocracia, democracia racial, racismo, apropriação cultural dentre tantos outros que atravessam a educação brasileira. Por fim, ao longo de 2021, realizei pesquisas de campo a fim de acolher a leitura de mundo e ouvir a perspectiva de educandas negras cotistas da Universidade Estadual do Ceará. Culminando na análise dos dados obtidos em diálogo com a própria UECE, em que percebemos a ausência de políticas públicas de assistência estudantil que garantissem a permanência de educandos/as cotistas dentro da Universidade.


por Davson Souza


5 - O que significou pra você como educador e cidadão trabalhar com um tema que é tão questionado?


Trabalhar com questões raciais sempre foi uma meta. Me afirmando como sujeito negro e periférico dentro de uma sociedade de supremacia branca é um desafio. Ser um pesquisador com essas características dentro nesse meio é uma luta diária contra as estruturas que foram criadas e são mantidas para me excluir desse espaço, seja meu corpo ou meu pensamento. Trabalhar com educação e relações raciais sempre foi prazeroso para mim, pois, como bom cientista sou movido pela curiosidade, e me sinto convidado a pesquisar esse assunto e escrever sobre. Ressalto que ainda temos muito a dialogar sobre essas questões no Brasil. 

Sobre o tema ser questionado, acredito que é desafiador dialogar sobre a temática em uma sociedade atravessada pelo racismo, principalmente nesse período em que vivemos em uma nação governada por uma ideologia (bolsonarista) que desacredita da ciência e busca de todos os meios destruir as conquistas sociais alcançadas por meio da luta histórica de agentes que doaram sangue, suor e a vida para que hoje pudéssemos ter a chance de escrever sobre isso.

Gostaria de por fim agradecer a entrevista e dizer que foi um prazer dialogar com vocês. Muito axé pra noiz. E como diria Os Racionais Mc´s “minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição” e esse livro foi escrito e pensado em formato de munição, para que possamos nos armar contra o racismo que está presente dentro da educação e na sociedade. 




Davison Souza é pedagogo formado pela Universidade Estadual do Ceará, educador popular e pesquisador nas áreas de educação popular, educação antirracista e política de cotas. Além disso, é ilustrador autodidata publica suas artes no Instagram @pretart em que dialoga sobre corpos negros e seus diversos atravessamentos na sociedade racista.

 

 




Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…