por Thaís Campolina__
A O/ | @jimla |
A
escrita do cotidiano é um convite, é a beleza do ‘causo’ contado no fim da
tarde em volta de uma mesa posta com café, leite, bolo de fubá e pão de queijo.
É uma conversa que pode evocar notícias, memes, tweets virais, lembranças
compartilhadas, o compartilhamento de uma intimidade, uma confissão de um
pecado, um plano a ser refeito e uma troca de receitas e contatos de médicos
que não te botam para esperar mais de uma hora.
É a escrita que evoca os microcosmos que nos formam, aquela que se lida faz surgir na mente do leitor um movimento de aproximação que busca similaridades e diferenças de hábitos, interesses, preferências alimentares e histórias de vida, porque naquelas palavras há um encontro com a própria rotina. Esse movimento de ir e vir de dentro pra fora, de fora pra dentro, é o que torna essa poética algo de todo mundo, o tal convite.
E, não
se engane, em meio ao mundo de beleza e humor que o todo dia pode oferecer, há
também temas difíceis. Nessa mesa posta pode faltar até o café. Nesses “causos”
compartilhados em torno de rosquinhas açucaradas, pode haver um pedido de ajuda
cifrado em segredos contados pela metade ou uma vontade entrecortada de falar
de alguém que se foi. Nessa rotina exposta numa conversinha mole de fim de
tarde de domingo, podemos encontrar uma denúncia de mulher em perigo de vida
digno de filme de ação hollywoodiano, apesar da aparente desimportância disso
para o mundo que a cerca.
Saber
olhar para o comum e o incomum no todo dia é descobrir que o que é posto como
‘menor’ é também uma construção política. O que está ao rés do chão, quase no
mesmo patamar que os corpos mortos em decomposição, são nossas vidas. Essas
vidas-vidinhas-da-silva, que, mesmo quando se deleitam em uma mesa posta cheia
de quitutes, ainda vale menos que a daqueles que se tornarão nome de vias
públicas nas grandes cidades brasileiras. E, por partirmos desse lugar, nos
tornamos juntos investigadores de todas as coisas sem registro toda vez que
contamos nossos “causos”, compartilhamos nossas impressões, buscamos as
testemunhas que podem confirmar a presença de cada um de nós na localidade em
que vivemos e nos perguntamos quais cenários compõem esse nosso lugar no mundo.
Essa
busca em registrar o que importa pra cada um de nós, mas não é visto como algo
interessante e notável o suficiente, é uma forma de tentar escrever sua própria
história, uma tentativa de entender como o tempo se manifesta nesse espaço que
ocupamos, transformando e afetando nossas vidas comuns feitas de eus e
arredores. No fim, a poética do cotidiano é um esforço pela formulação, uma
tentativa de responder como a junção disso tudo afeta nossa identidade. E nossa
identidade é feita de memória, como são também nossos registros. Escrever sobre
nossas vidinhas a partir desse suposto lugar de irrelevância é simplesmente uma
forma de dizer que somos gente.
Thaís Campolina é escritora e poeta mineira, pós-graduanda em Escrita e Criação, autora do livro “eu investigo qualquer coisa sem registro” (Crivo Editorial), obra contemplada pelo concurso Poesia InCrível.