A maleta quadrada em Atatürk | Wellington Amâncio da Silva

por Wellington Amâncio__





Sim. Diz-se “Istambul” aos iniciados, e não “estabulação”, que é talvez um estado de espírito sempre disposto ao Oriente. Estabulação reside em mim. Diz-se “Istambul” aos iniciados. Nunca mais a ninguém outro. Nos tornamos ocidentais demasiadamente.


E na Transoriente, da Avianca em pleno céu sem fundo, eu escutava, no fone de ouvido, não Luiz Gonzaga, que mais me combinava, mas a décima primeira de Shostakovich — a melhor, segundo penso. Aumentei o volume, porque Kitajenko estava conduzindo. Já nas primeiras notas emocionei-me um tanto, porém, eu não podia sair dos trilhos, tal como faço em casa. Um senhor na cadeira ao lado olhava-me de soslaio. Ele me percebeu — é óbvio? Não é obvio. Percebeu-me igual a quem redescobre o chão. E sem diretamente e olhar, disse algo, numa frase longa e compassada (porque eu observava o movimento dos seus lábios demasiado delgados). Tirei um fone de ouvido, e ele fez questão de repetir a frase, num inglês britânico do interior: “Este tipo de comoção você não poderia sentir! É-lhe proibido! A comoção é perigosa para você!”. Ouvi secamente, e quase que uma mão invisível apertava o botão pause do meu aparelho portátil, porque ia me sentindo obrigado a desligar o som.


— Mas Shostakovich era russo e não europeu! — retruquei, um tanto sem saber o que dizer.


— Não importa! Não importa! — insistiu ele, num gesto nervoso de mão.


Senti um misto de vergonha, frustração e raiva, e continuei:


— Senhor. Me deixe passar... sou trágico, e muito comum. Minhas roupas são opacas para não chamar atenção. Não ando ornamentado... estava aqui em silêncio. Vou a Istambul!


Ele não respondeu. Virou o rosto. Quem sabe não entendesse o meu inglês.


Cheguei de madrugada no aeroporto de Atatürk. Paisagem cinza, chovia muito, como dá última vez, há cinco anos. Liúna Moira me esperava debaixo de um toldo. Seus cabelos negros estavam um tanto molhados e quase não a reconheci dentro daquela roupa escura de frio. São quase cinco anos que não a vejo (exceto por meio de fotografias). Ela não trouxe guarda-chuva, porque segundo me disse não havia sinal de precipitação no céu ao sair de casa. Atravessamos a calçada e eu já estava encharcado. Umas mulheres de véu nos observavam debaixo dos seus guarda-chuvas. Acenamos a um táxi que se aproximava junto à calçada e este sinalizou em faróis amarelos. No momento exato em que Liúna abriu a porta, escorreguei e cai de joelho. Percebi que as mulheres de véu me observavam sem nenhuma expressão no rosto. Me levantei, e o fone estava ainda no pescoço, o fio desconectou-se do aparelho. Numa poça d’água, meu walkman tocava um trecho do último andamento da décima primeira de Shostakovich, quando por fim se calou. Agitei-o para desfazer o excesso de água e coloquei-o no bolso do paletó. Dentro do carro o barulho abafado das muitas gotas de chuva sobre o teto me parecia gargalhadas, iguais aquelas dos programas de auditório.


— Até a chuva me faz de trouxa... — disse baixinho, sem querer. Liúna Moira ouviu. Estava atrás de mim.


— De que modo isto é verdade, João, da chuva te fazer de trouxa?


— ...


Entramos no carro. Liúna falou ao motorista alguma coisa em turco (ou em uma língua não latina, sei lá). Ambos se puseram a gargalhar de modo incomum. Eu achei deprimente, porque certamente estavam gozando da minha cara. Ainda se recompondo, ela me perguntou se eu estava gostando da viagem e o que eu trazia na maleta quadrada (pelo tom de voz, parece-me que reproduzia naquela língua o que me falava em português, e o motorista gargalhou novamente). Respondi-lhe que além de umas poucas roupas, trouxe “Judas” de Amos Oz, e uns charutos baratos (que eu iria fumar pela primeira vez, porque não tive tempo de prová-los no Brasil). Abri a maleta e a pus sobre as pernas. Liúna olhava meio de lado, observando seu conteúdo. Meio tímido e trêmulo, coloquei por acaso um charuto entre os lábios. Ao me olhar pelo retrovisor, o motorista riu novamente. Liúna comprimia os lábios. Ele disse alguma coisa no meio do riso e Liúna traduziu dizendo que ele me perguntava se eu estava comemorando algo com o charuto. Ele não sabia que nós, no Brasil, fumamos charutos até por zombaria, porque se não acreditamos mais em nada neste mundo, isto ainda não nos obriga a que dispensemos os nossos charutos. Não há mais o que comemorar no Brasil, é certo, então fumamos uns charutos, bebemos umas pingas, transamos por quinze minutos com pessoas desconhecidas, quebramos algumas vidraças, chamamos certos políticos de “filhos da puta” e bebemos champanhe de maçã, para comemorar certas derrotas recorrentes, porque são derrotas — se é que me entendem — sem evidências gritantes de bombas, tiros, ou genocídio armênio; nossas derrotas são bem realizadas, porque não deixam grandes sequelas, a ponto de que nos choquemos e digamos “Ah, quão grande sequela!”, por que somos meio cegos e apáticos, porque não cremos mais em nada, porque nos conformamos com o “quinto dos infernos”. Não é preciso um véu de pudor sobre toda aquela zombaria, escárnio, corrupção e obscenidades morais de todos os tipos. A maioria é indiferente à nossa capacidade incrível de improvisar em cima de um tema demasiadamente degradante à espécie humana...  Talvez eu estivesse pensando acerca destas coisas porque estava bastante tenso e frustrado com as gargalhadas dos dois.


Pedi para Liúna dizer ao motorista que eu sou um ocidental, mas ao modo brasileiro. Compreendi quando ele disse “Pelé”, e eu pensei que não haveria mais o que comemorar no Brasil depois que Pelé pendurou suas chuteiras.


Após nossa breve conversa há um silêncio demorado, sossegado e monótono, acho que devido aos sons abafados do motor e da chuva. No banco de trás, aproveito e observo longamente pelo vidro embaçado do carro. Vejo um mundo distante e intangível, um mundo cinza e enevoado, lá fora. A paisagem indefinida filtrada pelo vidro embaçado do carro me traz paz.


Enquanto observava a paisagem gris, me lembrei de evento engraçado, há mais de 25 anos atrás, quando me apaixonei por algo da música de Frank Zappa, para ser mais preciso, por um dos seus discos. Li uma matéria numa Revista Bizz. Logo comecei a juntar dinheiro para comprar o álbum “Ship Arriving Too Late to Save a Drowning Witch”, o único disponível naquele momento, até onde eu sabia. Demorou bastante, porque eu era muito pobre, meu pai tinha acabado de falir. Enquanto o disco não chegava, aproveitei para fazer uma propagada do estilo musical. Era um som rock, de guitarras e bateria, com o próprio Zappa cantando, mas era rock não convencional, “impossível de tocar no rádio”, diziam. Isto me agradava, o diferente, o que não fosse trilha sonora daqueles dias monótonos e cruéis. Eu queria uma trilha própria, toda minha para laurear a minha vida interior ainda muito preservada da “erosão interiorana”.


Custou-me quase dois meses para “levantar” o valor do disco. Eu estava ansioso. Mandei imprimir um boleto e paguei no dia seguinte. Agora eu estava aguardando o álbum chegar pelos correios — o que demorou mais de 15 dias. Lembro-me que enfim abri o pacote de papelão como quem abre com fome uma marmita de comida boa e cheirosa. Impaciente e sem saber disfarçar, esperei meu pai sair ao trabalhar para somente assim eu poder usar o som dele (meu pai era audiófilo e um genuíno avarento, nunca soube dividir alguma coisa com o coração tranquilo, mas comprava muito para si enquanto teve dinheiro. Ao faliu sobrou-lhe apenas o grande aparelho de som hi-fi, sua maior paixão, e centenas de discos de vinil empoeirados dentro de três grandes armários moles). Em busca de encontrar uma pérola, ouvi o disco à exaustão e até meu pai chegar ordenando-me desligar o seu som imediatamente. Confesso que as primeiras audições foram frustrantes, “Como pude pagar tão caro e esperar tanto tempo para ouvir um disco tão estranho?...”, eu pensei com raiva. Mas, a partir da décima audição — porque eu o ouvia todas as tardes — fui me acostumando com aquilo, a ponto de cantar junto com Zappa, “No not now... Maybe later...”. o disco era uma verdadeira festa, mas uma festa muito esquisita, psicodélica e urgente. Era como se depois do show viesse o fim do mundo.


Ouvindo exaustivamente aquele álbum ansiei descobrir o que os caras diziam. Com um dicionário escolar me esforcei a traduzir parte da letra: “Ela diz que eu sou livre, mas que eu gosto da sua irmã, e que aquela não pode decidir em quem vai montar esta noite”. Já a primeira parte diz: “Não, não agora. Talvez depois...”, e nesta frase, cantada por um coral fanho, não consegui ver nenhuma jovem bela, mas o destino ainda avarento adiando dias melhores para mim. De todo modo, aquela música era um mundo em si mesmo, bastava eu ligar o som. Ao ouvi-las, algumas vezes, uma porção de “tempo distinto” inflava dentro do tempo mordo da realidade ao meu redor, e eu entrava dentro dessa porção como num quarto e por ali ficava o quanto pudesse.


Um dia meu pai chegou aborrecido.


— Sua mãe me disse que você ouve música a tarde inteira. Não teria outra coisa a fazer? Quanto você acha que custa a energia?... Mas eu entendo você... Eu entendo que também tem um gosto “classe média”, embora não tenhamos dinheiro como antes. Seja mais razoável e eu não vou me meter com seu gosto por cultura. Com sorte voltaremos logo à normalidade.


Por meus excessos de elogios ao álbum um colega curioso acabou aparecendo em casa. Sentou-se no sofá apenas para ouvi-lo comigo, ele disse. Estava muito curioso para conhecer o som de Frank Zappa. Na verdade, era fanático pelos álbuns do A-ha. Gostava de ler Freud e possuía alguns manuais de psicologia.


Ele observou atentamente aquela capa minimalista, de fundo branco, apenas com uns rabiscos geométricos e franziu a testa. Eu coloquei o disco para rodar. Nos primeiros acordes ele mordeu os lábios, juntou os joelhos e olhou para o chão.


— Rapaz, isso é rock... — ele exclamou com seriedade.


Mas, quando o coral fanho de mulheres começou a repetir dezenas de vezes o refrão “No not now...”, ele emitiu, com o rosto para cima, uma gargalhada duradoura. Com vergonha, achei melhor não dizer nada, tentando esconder certa frustração. Afinal, entre meus amigos e colegas eu era visto, para o bem ou para o mal, como um representante de Frank Zappa naquele município cinza onde morávamos; era uma questão de honra, de “espírito de torcida” e “defesa do meu time” justificar as qualidades daquele álbum. Não era fácil, nem árduo, pois já vi situações piores, como a briga de faca, no club Halley, em defesa da banda Furacão 2000, em que Sid Lino, um adolescente, retornou meses depois, lívido e todo costurado do hospital.


— Eu sei porque você ouve esse disco... Essas músicas são fundas como um rio. Acho que você ouve apenas a superfície delas. Acho que você se agarrou aos comentários positivos dos críticos de música a este disco. Eu divido que você entenda o que está rolando de fato nesse tipo de som. Essas músicas são difíceis de entender e até mesmo tocá-la assim, para outros escutarei pode ser engraçado para as pessoas. Você não gosta dessas músicas, deste álbum de Frank Zappa. Você gosta das ideias em torno desse tipo de cultura, até onde você pode entender. É isso que acho. Me diga se não estou certo.


Dias depois, enquanto eu andava de bicicleta, o álbum caiu no chão e quebrou-se de modo irreparável. Foi minha triste despedida a Franz Zappa. O disco me custou muito caro e por décadas nunca mais pude ouvir outro disco deste herói. Na verdade, eu também caí da bicicleta, porque notei depois que perdi meu relógio de pulso barato, restando apenas sua silhueta branca sobre minha pele marrom. Por algum tempo eu estive triste por perder aquele disco e o relógio, e estranhamente eu olhava pensativo para o meu pulso vazio, até que vi uma coisa pequena trafegar por baixo da minha pele e sair por um buraco, que imediatamente se fechou. Essa coisa que escapou de dentro de mim parecia-se a uma formiga verde e cantava, eu acho, uma música que eu gostava muito “Lucy in the sky with diamonds”, enquanto se afastava. Depois deste evento eu tive paz. Entendi-o como um “sinal” e me conformei, às vezes o destino tem um prêmio ou outro de consolação. Descobri, nessas audições, que meu mundo não era realmente duro, seco ou árido; a solução estava em eu ouvir mais música. Quanto mais ela tocasse em meus ouvidos mais a vida se tornaria boa.


Assim, como eu não vivia mais sem novidades musicais, acabei bisbilhotando muito aonde pude. Em um dos três grandes armários moles do meu pai descobri uma coleção de discos lacrados de música clássica. Sobre estes, se eu tivesse a coragem de abri-los, não comentaria minhas audições com mais ninguém. Descobri que esse tipo novo de música tinha maior poder de me arrancar da realidade feroz em que eu vivia, me arrebatando para dentro das suas notas musicais muito sinuosas.





Wellington Amâncio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. É músico multi-instrumentista e produtor musical. Publicou-se: Ontologia e Linguagem (2015), Pensar a Indigência com Michel Foucault (2018), Gumbrecht leitor de Heidegger (2019) e Conceito de modo de convivência (2018), além de dezenas de artigos científicos. Em literatura publicou-se: Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) e Elegia da Imperfeição (2001). Editor das Edições Parresia. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca.